Crônica
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Ilustração: Dhiow Barros
Rômulo Costa
A menina do vestido laranja e os barquinhos de papel
A casa era pequena. Nada além de três cômodos que se dividiam - como dava - em sala, cozinha, quarto, banheiro e varanda. A porta da frente se abria para a rua sem pavimento, de areia e marcas. Por ali, passeavam as senhoras a organizar as pendências do almoço de mais tarde, enquanto os meninos corriam chão com os pés descalços. Se equilibravam na lama de outras casas pequenas como aquela. Era costume sentir o lodo sob os dedos dos pés. Ou meter-lhe a mão quando encontravam a moedinha dos bolsos distraídos.
A porta dos fundos estava cerrada por chave, como sempre esteve. Tinham quintal, mas era como se não houvesse mais nada para além da parede do fogão. Só percebiam a vista do lado de lá quando as sacolas de lixo não se aguentavam dentro de casa.
Se não há quem leve, dá-se um jeito. O caminhão é o rio. E por ele se vão as sobras dos dias por curso de água densa e estranhamente escura.
Foi difícil explicar para a menina do vestido laranja que aquilo não era lugar de banho. “Não tá sentido a catinga?” Não, ela nunca sentiu. Se por ali passou algum cheiro, era o de sua casa.
Cada lugar tem jeito diferente de deixar marcas nos outros. O cheiro é dessas assinaturas e carteira de identidade. A escola cheira à raspa de giz. O Centro cheira à buzina. A casa, ora, cheira à catinga. Nem a mãe percebe mais. Cheiro se disfarça.
Por insistência, deu por acreditar que aquilo era rio - ou braço de mar, como aprendeu a dizer. Cada caminho torto de água saída da rua era, portanto, dedos e mãos desse mesmo braço, que (acreditava) ia se encontrar na praia. Vez por outra um barquinho de papel aproveitava a correnteza e ganhava o mundo.
Toda mão foi feita para carregar.
A menina achou estranho quando ouviu da boca dos vizinhos o nome daquele rio. Canal não era palavra bonita. Nomes, porém, são coisas de muito tempo. Custam a mudar. Ela inventou outros batismos, mas nunca ousou colocá-los no mundo feito barcos de papel. Canal é desses nomes que assustam em tempos de chuva forte, a menina lembrou. Já ouviu falar desses estragos na televisão.
Desde que se mudaram para casa de três cômodos, o céu decidiu não mais pingar. Mas não haveria de ser assim para sempre.
O aperreio aconteceu no susto. Era noite e as nuvens se adensavam no céu. Mal dava para ver a lua, mas nisso ninguém repara porque ali não se perde tempo com frescuras. A preocupação era outra.
A menina chegou a ouvir a mãe falar mais alto, quase gritar. Não entendeu o porquê. Quando a noite se fez alta, o céu caiu como rio sem chão - braço, mão, dedo... o corpo inteiro. Como em abraço apertado de água, tudo virou caminho pro mar.
O pouco do que restou da casa foi vontade de reconstrução. É difícil ver as coisas de todos os dias se transformando em barquinhos de papel para seguir o curso desconhecido das águas densas e escuras. Mas dizem que a vida tem dessas coisas, o que nos resta é aceitar.
Com esforço, a casa virou duas. Os cômodos aumentaram mas não por causa de conforto, por assim dizer. Era melhor ter um refúgio perto do céu, principalmente nesses períodos em que as chuvas decidem abraçar.
Ganhou duas casas diferentes. A de baixo pintada como a mãe quis, mas ainda com a marca do rio na parede. A de cima com jeito de reconstrução, tudo ainda por se organizar. Sem querer, a menina do vestido laranja ganhou um lugar preferido. Um canto de onde alcança o rio e vê - de cima - ele tomando outras formas, novos horizontes. Vê e acha bonito, muito embora sinta medo da chegada violenta da chuva.
Quando menino, visitei o melhor lugar daquela casa. Eu e a menina do vestido laranja gostávamos de ver o rio se perder por estradas onde os olhos não alcançavam mais. Nossa diversão durou pouco, no entanto. Em pouco tempo, ela e minha tia precisaram sair dali. Ouvimos dizer que era área de risco. A casa que virou duas passou a ser só das lembranças. Foi destruída por alguns caminhões grandes. Dessa vez, sem chances para os barcos de papel.
De longe e pela boca dos outros, soubemos que o esgotamento chegou à rua Alberto do Monte, no Bonsucesso. Parece que os caminhões de lixo passam por lá com alguma regularidade. O acúmulo de sujeira no velho rio, porém, permanece. No leito, ainda há sacos plásticos e novas casas de três cômodos. Por ali, a água teima a correr densa e estranhamente escura, como naquele novembro de 1996.