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Já são quase oito horas da noite e João Paulo Nobre está sentado em um banco de frente ao prédio em que sua esposa trabalha, no Meireles. Enquanto ela não desce pelo elevador, ele espera mexendo no celular a fim de passar o tempo com mais pressa. O casal mora a quase 60 quilômetros dali, em um bairro de Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza. O militar do Exército busca semanalmente a esposa e o filho, ainda preso no ventre, para fazer um percurso longo, porém em família.

Apesar da viagem realizada durante a semana, João Paulo não frequenta tanto o Meireles como gostaria. O vento que vem do litoral e percorre as ruas através da Beira-Mar banha seu corpo pelo menos duas vezes ao mês no lazer da família. “A gente às vezes vem jantar, andar de patins, vem à praia também” principalmente aos sábados e domingos.

Em um outro ponto no cartão-postal da cidade, Meire Azevedo senta em um banco ao lado do marido enquanto observa o filho recém-nascido no carrinho. O menino, que não chega a ter um ano completo, está dormindo enquanto os pais param para tomar uma água de coco em um banco. Natural de Minas Gerais, a bancária mora no Meireles há pouco mais de um ano e considera o local adequado para viver. “Aqui é um bairro completo, tem de tudo, eu ando bastante por ele”.

Quando sai de casa, o casal deixa as próprias alianças guardadas e a esposa esconde até os brincos para não chamar tanta atenção. “Eu ia do meu trabalho até a avenida Santos Dumont a pé, caminhando. Eu tiro tudo porque você corre o risco de ser assaltada”.

Além da Beira-Mar, local onde caminha raramente, apesar de ser o grande point dos moradores da região, Meire frequenta restaurantes e bares, mas “não anda tranquila” pelas ruas do bairro. “Quando anoitece, eu evito andar. É perigoso”. Quando passeia pelo local, ela observa que há policiamento, mas ainda muito escasso. “Agora tem mais na Beira-Mar, no restante do bairro, eu não vejo, não”.

João Paulo, por sua vez, prefere os locais de lazer da região pois “há uma sensação de segurança pelo fato de ter mais movimento e até mais opção”, além do policiamento. “Você vê frequentemente policiais passando. Não sei a distância exata que eles ficam, mas se você der uma caminhada, você vê pelo menos umas três duplas de policiais”.

Na Caucaia em que o militar do Exército fez morada, “a gente nota uma diferença porque só vê uma viatura passando e com um intervalo de tempo muito grande”. Até a forma de abordagem é diferente: “lá, geralmente, eles fazem um trabalho mais ostensivo, de parar realmente ‘elementos suspeitos’, aquela abordagem mais intensa”, mas no Meireles há uma “certa cautela de fazer esse tipo de abordagem”.

Pela vivência na região, Meire Azevedo já observou pelo menos três abordagens de policiais no bairro, todas similares entre si, mas apenas com “suspeitos”. “Eu vi a de um cara que eu acho que ele tinha acabado de assaltar alguém, então foi meio violento, assim. Ele tava no chão, deve ser também porque ele resistiu”.

Com o direito à dúvida, Meire não sabe se ali ocorreu um caso de excesso de força, mas alinha sua crença à ideia de localização do bairro. “Nessa região aqui, eu acho que não. Pode ser que em outras regiões, onde tenha mais violência, ocorra com a classe mais baixa, mas seria interessante ver se o tratamento deles é diferente lá. Aqui eu acho que não”.

A história de Augusto Barros se confunde com a do bairro Conjunto Palmeiras, na periferia de Fortaleza, em muitos aspectos. Com 63 anos na identidade, mas 66 de vida  idade considerada por ele como “de mentirinha” –, ele joga dominó às tardes com um grupo de colegas que se reúne diariamente na rua Serra Azul, a duas casas da sua e a quase 20 quilômetros do Meireles.

Seu Augusto chegou ao Palmeiras em 1976. Até então, o bairro só existia há três anos por ordem do prefeito Vicente Cavalcante Fialho, que havia realizado uma “higienização” no Centro de Fortaleza e na região da Beira-Mar, tirando de lá as comunidades mais pobres e realocando-as em outros pontos da cidade.

Naquela época, “não tinha absolutamente nada, eles fizeram galpões de madeira e de lona e jogava até seis famílias dentro desses galpões sem infraestrutura nenhuma”. O local na época era um grande brejo, não havia palmeiras ou sabiás, apenas mato e lama. Dos quase 37 mil habitantes do bairro, gostando ou não dele, todos conhecem um dos fundadores do Palmeiras, desde o “pobre dos pobres” até quem ascendeu à classe média.

Desde criança, Augusto tinha o sonho de ser padre e foi para poder ser seminarista que a mãe omitiu sua idade. “Para eu entrar, eu tinha que ter oito anos, eu já tinha onze. Minha mãe diminuiu a minha idade três anos”. Apesar disso, ele não conseguiu seguir a carreira, mas como cristão ativo, frequentou a Igreja Católica durante anos até se tornar evangélico.

Foi nas missas que ele aprendeu sobre movimentos sociais e as formações dos sindicatos trabalhistas. Nesse período de efervescência social e de luta por água e energia para a comunidade recém-criada, começou a relação de embates entre Augusto Barros e o braço armado do Estado na região. “Eu já apanhei bastante da polícia por causa dos movimentos sociais do Palmeiras. Já briguei, já cheguei a rasgar farda de policiais”.

Pai de cinco filhos e ativo politicamente, Augusto teve de lidar com uma ação de abuso de poder de um policial do Conjunto Palmeiras em um período de campanha eleitoral. Enquanto a filha segurava uma bandeira de um político que ele apoiava, um outro grupo também levantava materiais de um candidato contrário. “O policial veio e tomou a bandeira da minha menina”. Ao ver o choro da criança, ele perguntou: “por que é que você faz isso? Não é democracia?”. O equilíbrio emocional, então, deu lugar à raiva. “Dei um ‘murro’ nele, rasguei a farda do policial e aí o pessoal correu para me ajudar”.

Os relatos de violência e abuso de poder não são apenas marcas no tato de Augusto, mas também compuseram sua visão durante o período em que ele vive no bairro. Ao presenciar um espancamento de uma pessoa identificada por ele como “marginal”, Augusto abriu a porta e foi falar com o policial, pois ele não era o “dono da lei”. “Mesmo o cara sendo marginal, eu vi a polícia arrastar um deles, pisando na cabeça dele, então eu fui lá e disse: ‘Olha, o cara já está preso, então não precisa mais pisar na cabeça do cara. O cara é marginal, mas já está entregue, é só prender’”.

Crítico do sistema prisional, o senhor de 66 anos verdadeiros vê um corporativismo latente no militarismo. “A polícia é assim porque já foi formada desse jeito. Às vezes a gente vê os coronéis dizendo que é raro eles fazerem isso, mas, debaixo dos panos, eles sabem que a polícia faz e eles guardam mesmo.”

A pelo menos quatro quarteirões da casa de Seu Augusto, na Serra Azul, vivem Rosângela Oliveira e família. Eles aproveitam o fim da tarde sentados à porta da casa, cujo muro é remendado com pedaços de um azul e branco desbotado enquanto homens trabalham para uma sonhada pavimentação e planificação da Rua Avaré, paralela à avenida principal Valparaíso.

A moradora da casa número 167 frequenta o Conjunto Palmeiras em sua totalidade. “Antigamente, quando tinha aquelas brigas de gangue, a gente não andava por todo canto, mas, agora que fez a paz, a gente anda”. O acordo, “pelo que eu ouvi dizer, foi uma paz entre as gangues”.

Com a naturalidade de quem expressa através de palavras a paz que acomete o bairro, Rosângela observa frequentemente a passagem de policiais. “Por aqui sempre passa a Ronda, o Raio, mais é o Raio que vive por aqui”. Apesar de a Ronda de Ação Intensiva e Ostensiva (Raio, considerada a "tropa de elite" da Polícia Militar) causar mais medo nas pessoas pela forma de atuação, esta varia de acordo com o momento e com o tipo de chamado. “Quando eles atuam em abordagem de carro, eles vão atrás e abordam direito; antigamente, quando era caso de morte, eles vinham de uma vez, eles eram muito brutos com as pessoas”.

Rosângela enxerga esse tipo de abordagem como uma ação que ficou para trás, principalmente após a pacificação. “Eles fazem tudo de forma normal; eles algemam, dão busca de armas. Se for a pessoa que tá no meio do crime, eles colocam dentro da viatura presa”. Quando há algum tipo de resistência à detenção, “muitas vezes eles batem porque as pessoas não querem ser presas, tem muitos por aqui que reagiam e eles pegavam e batiam”.

Apesar de ter “medo de tudo”, no passado de Rosângela também ficou o receio de policiais. A instituição deve fazer medo em quem deve alguma coisa à Justiça, “a mim não causa medo nenhum que eu não devo nada, aí é tudo diferente”.

O sol das três horas da tarde no Meireles é tão forte quanto um clima tropical pode conseguir ser. É por isso mesmo que o movimento na calçada segue calmo, quase nulo, como um mar que parece começar e encher. Em um ponto no bairro, um dos muitos na pequena região, há um solitário militar batendo ponto, aproveitando o melhor alívio que se poderia conseguir daquele horário: uma sombra.

Ele para e compra uma cocada de uma senhora de idade avançada que passa vendendo o que provavelmente é o sustento da sua família. Cada unidade, cinquenta centavos. De volta ao seu ponto, enquanto mastiga cada pedaço do doce, ele conta sobre suas peripécias policiais. A região é, via de regra, “tranquila”. O maior problema vem de “descuidistas” que acabam tendo falta de atenção com seus pertences e deixando-os expostos para qualquer um ver, o que pode facilitar a ação de algum assaltante.

Em turnos de oito horas completas, o policial não tem período fixo para entrar no posto, tendo, às vezes, de trabalhar no meio da tarde até o meio da noite, pela manhã ou pela madrugada. Reflexo de uma profissão que não tem hora para começar, nem para terminar. Calmo, ele aparenta não ter reclamações da sua rotina.

Tendo trabalhado em outras localidades, o militar é categórico em dizer que o bairro “é a área de trabalho com menos problemas” que já teve a oportunidade de lidar. Entretanto, “não se pode realizar uma abordagem bem-feita no local”.

Arma em punho e apontada para o suspeito seriam os procedimentos perfeitos para uma rendição. “Aqui tem muita gente, pela segurança da população é melhor não sacar o armamento, a situação se torna mais delicada com um grande número de pessoas em volta”. Porém, o mesmo não se repete na periferia onde trabalhou, pois lá “há menos pessoas nas ruas, lá a abordagem pode ser feita de maneira melhor”.

A noite do Meireles, por outro lado, é o retrato do turismo. Como que única e exclusivamente pela falta do calor excruciante do sol,  o local banhado pela luz refletida pela lua explode em gritarias de comerciantes, movimentação e em cheiro de comida. Em outro ponto, menos suntuoso e mais vago, dois policiais estão a postos com seus rádios e semblantes tranquilos.

Um deles, mesmo que com certa relutância, resolve conversar. Concordando sobre o nível de tranquilidade do local, novamente os “descuidistas” são o fruto das maiores ocorrências na região. Cordões, relógios e pequenos aparelhos eletrônicos são os itens mais propensos a assaltos.

As abordagens, no Meireles ou em qualquer lugar, sempre são padronizadas. “Não é porque algum está vestido de maneira diferente que vamos mudar nosso comportamento, as coisas não são assim”. Porém, visto que o corpo policial é extenso na capital, que emprega cerca de 15 mil pessoas, é de se esperar “que existam policiais que não sejam dessa maneira”.

Aproveitando a oportunidade, o policial militar aponta para muitos dilemas em sua profissão, principalmente aqueles envolvendo a hora da ação e do perigo. “Se eu não agir na hora certa para tentar salvar o meu parceiro e ele acabar morrendo, a culpa da sua morte será minha, segundo a justiça”. Por isso, ele acredita que a abordagem e o “agir truculento” dos policiais são questões bastante delicadas, pois até onde se pode ir ou se prevenir para garantir sua integridade física e a de seu parceiro?

“Às vezes a abordagem pode ser truculenta, mas é preferível pedir desculpas quando tudo estiver mais calmo do que ter que enfrentar sérias consequências mais tarde”.

Diferente do que foi visto no Meireles, local em que uma dupla de policiais era encontrada com frequência, nos três momentos em que a apuração foi feita no Conjunto Palmeiras, não foram vistos nem policiais militares, nem viaturas da instituição. Na falta de agentes da segurança pública, são os moradores que podem falar sobre a rotina dos policiais na região. 

A outra cor da sirene

As duas cores da

sirene

Correspondendo ao perfil dos que têm medo da Polícia Militar, os onze homens assassinados na maior chacina do Ceará, no dia 12 de novembro de 2015, na Grande Messejana, não deviam praticamente nada à Justiça. Dos 11, um respondia por acidente de trânsito e outro por falta de pagamento de pensão alimentícia.

Reportagem
Cadu Freitas

Michel Miron

Fotografia
Marcelo Monteiro

Narração

Taís Barros Bezerra

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