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Caminhos

O Espiral convida você a conhecer relatos encontrados entre caminhos tortuosos de uma cidade grande, desigual e opressora, cujas esperanças desembocam no mar.

Tão ensolarada quanto Fortaleza permite ser, a Praça da Estação serve apenas de desembarque para quem quer entrar, sair ou se movimentar pelo Centro da cidade. Pouco arvorejada, quem busca sombra precisa disputar espaço nas marquises dos pontos de ônibus. Cortada por quatro vias, o que poderia ser um espaço de lazer lembra apenas um terminal de transporte coletivo.

Após ter recebido seu nome por causa de uma antiga estação de trem – hoje desativada –, em frente ao local, o ponto de embarque e desembarque parece ter se perdido em algum lugar no tempo. Afastado dos demais transeuntes, Paulo Augusto frequenta o local há pelo menos 21 dos seus 37 anos de vida. O hábito de locomover-se pela praça abre espaço para outro costume: o de enxergá-la com tristeza.

 

“Essa praça é usada mais para transporte; é como se fosse um terminal, já a praça de bairro é bem diferente, pois você pode ter uma quadra, um jardim, bancos pra você sentar – que aqui não tem nenhum, se não for o banco da parada. Era pra ter porque é como se ela fosse uma praça principal, mas ela não tem.”

Cercada de lojas, a Praça da Estação ganha vida não por causa do atual estado, mas pelo ritmo frenético do comércio formal e dos vendedores ambulantes do Centro da capital. Um deles é Ricardo Prudêncio, 39, dono de um sorriso amigável e de uma barraquinha de churrasco.

Ao longo de seus 15 anos de ofício na Praça, Ricardo percebe diversas mudanças no local, porém a que mais chama sua atenção é o aumento do número de usuários de drogas na região. 

Muito conhecido na Estação, Ricardo nunca chegou a sofrer violência durante o expediente. Porém, as marcas do tempo transparecem o aprendizado e a resiliência de quem já passou pela mesma situação e conseguiu superar. Dono de um forte espírito de gratidão junto a rugas e cabelos grisalhos, o comerciante traz consigo a convicção de quem enfrentou o pior.

“Eu sou um ex-viciado. Tá com três anos que eu parei de usar drogas – eu usava droga todo dia. Não tenho vergonha de dizer isso pra ninguém, pois só devo a Deus e a mais ninguém. Passei 20 anos usando drogas e saí para a honra e glória do senhor Jesus".

 

Foi por meio da fé, aliada ao trabalho, que juntou forças e determinação para sair dessa condição. "Eu sofri, mas tô vencendo... Cada dia é uma luta”.

Quando a noite cai, o movimento na praça rapidamente se esvai. O ritmo apressado, seja de ônibus ou de passageiros, desacelera em pouco tempo. Com o perigo à espreita, muitos comércios fecham as portas junto ao sol, tanto por falta de clientes, quanto por medo da violência. Nos coletivos, mulheres e homens partem rumo ao conforto e à segurança do lar. Mas há quem não se sinta seguro apenas entre as paredes de casa, há quem encontre na rua ainda a segurança para viver. 

A Rua dos Tabajaras é marcada por contrastes. Se a falta de asfalto, a pequenez e o estreito meio-fio moldam a via de nome indígena com simplicidade, uma boa quantidade de bares e casas de shows transmite sofisticação e boemia logo ao lado do mar de Iracema.

Enquanto o sol da tarde fraqueja e o movimento na rua aos poucos aumenta, Rui, 24, conhecido como “Crash”, estampa um mural na frente de um bar local. Tranquilo, mas receoso em conversar, o grafiteiro

O grupo que dá o tom do fim da tarde na Ponte dos Ingleses é o de Alice, 17, que aproveita a roda de amigos junto a acordes de violão. Enquanto canta uma canção gospel, seu cabelo curto se movimenta no ritmo da música, do vento e de suas emoções. “É uma sensação muito boa estar na praia, sentir o vento, a maré. Você se sente muito confortável”.

Frequentadora do local há pelo menos três anos, a moça enxerga o policiamento da região como uma questão de conhecimento popular: apenas para inglês ver. Ciente de que Fortaleza pode ser perigosa, Alice sempre anda com amigos, mas acredita que a verdadeira segurança “vem da união e da ocupação”. No entanto, a estudante considera que a população não faz sua parte – “muitas vezes o público destrói o patrimônio”.

Durante a noite, a iluminação da praça deixa a desejar, mas nem por isso o movimento fica à sombra. Contando apenas com as luzes fracas da Praia de Iracema, grupos de jovens, como o de Alice, frequentam o local até tarde da noite, inclusive usufruindo das torres de observação. Exemplos de coragem, a Rua dos Tabajaras e seus arredores constroem uma forte prova de resistência da população, no intuito de ocupar um espaço revivido à noite e mesclar as culturas de vários povos.

À medida que o medo se quebra entre mar e terra, a coragem desponta no ar. Esse exemplo foi o que levou Santos Dumont a alçar voo e marcar não somente a história, mas também uma das vias mais longas e importantes de Fortaleza. Se a noite tabajara mostra o movimento de pessoas como ritual sobre a simplicidade de seu calçamento, é na avenida do Pai da Aviação que os automóveis entram em cena como verdadeiros aviões. 

 

O início da tarde já mostra o trânsito frenético dos oito quilômetros que ligam o Centro à Praia do Futuro e se tornam o principal eixo de expansão econômica da cidade. Carros, motos, ônibus, pessoas apressadas entrando e saindo do trabalho, além de diversos pontos comerciais que cercam a área, refletem as imediações da avenida. Mas, mesmo com o trânsito caótico, a sensação de medo encontra espaço para circular.

“É muito trânsito. Como o pedestre não tem vez, a gente morre de medo porque não tem segurança. Ontem mesmo aconteceu um assalto na parada de ônibus", comenta o operador de caixa Victor Ferreira, 20, ao lembrar do dia anterior com o olhar pensativo. A própria "caminhadinha" passa a dar sinal verde para que os assaltos possam cruzar o caminho de quem anda por ali. 

Antigamente, o destino dos passos que seguiam em direção à avenida Santos Dumont era guiado por prédios históricos e ricos em cultura. Porém, aos poucos, esses espaços foram dando lugar a empreendimentos comerciais, que propiciaram um isolamento revestido de muros altos, portões automáticos e cercas de segurança. O contato e os passos das pessoas são agora muito mais rápidos: a apreciação da avenida passou a ser de temor, de preocupação e de apreensão.

Depois das sete da noite, o movimento se resume a pessoas nas paradas de ônibus, seja voltando do trabalho ou dos estudos. O morador e comerciante da região, Jean Carlos, já presenciou muitos roubos à meia-luz dos abrigos antigamente. “Teve uma época que tava difícil por conta dos assaltos, nas paradas de ônibus, mas tem melhorado bastante”.

No entanto, algumas melhorias parecem não voltar no tempo. Se os assaltos, mesmo com a diminuição vista pelo comerciante, poderiam tornar o espaço mais habitável, as relações humanas de proximidade ficaram para trás. “As pessoas se encontravam nas ruas; hoje diminuiu mais. Aqui mesmo tem senhores que andam, param e conversam, então ainda existe aquela afetividade nas ruas, mas bem pouco comparado ao tempo dos meus pais”.

A Avenida Santos Dumont passou a parecer um “não lugar”, como já dizia o antropólogo Marc Augé. A falta de ligação entre as pessoas por causa do tempo e da ação racional em meio à multidão faz com que a própria via asfalte um espaço no qual as relações sociais antes poderiam florescer – minando a reciprocidade e a permanência no local.

Dessa forma, os espaços construídos acabam, muitas vezes, não sendo vividos. Contudo, é ao final dessa mesma avenida,  quando a vista começa a procurar o mar, que encontramos a prova de como a vida ocupa o lugar. 

A necessidade de ter um espaço de lazer na Praia do Futuro era uma ansiedade e inquietação muito antiga dos moradores, devido à marginalização e à violência frequente no lugar. A reforma e a transformação da Praça da Paz Dom Hélder Câmara, mais conhecida no imaginário popular como Praça 31 de Março, possibilitou uma ligação mais próxima das pessoas com o espaço público de uma das regiões mais turísticas da cidade.

Apesar da mudança do novo nome pela Prefeitura para homenagear Dom Hélder Câmara, as pessoas continuam a ter uma ligação com o antigo que remonta e marca os 52 anos do Golpe de 64, que instaurou a ditadura no Brasil. A nova identidade despersonalizada e tirada pelo órgão fazia referência a um tempo repressivo, mas para aquela população a mudança do nome é a mudança da própria história deles com aquele lugar, esvaziando totalmente o sentido com o golpe.

Durante dois anos e nove meses, a praça esteve cercada por tapumes e blocos de concreto, o que tornou um esperado espaço de lazer terreno inacessível para a população e promissor para a criminalidade – junto às burocracias e à transição da gestão municipal, que atrapalhavam e atrasavam a conclusão da obra. Marraiana Oliveira, dona de um pequeno comércio de roupas localizado em frente à praça, foi uma das pessoas que não puderam usufruir do ambiente ao longo do tempo em que o local ficou fechado para reforma.

Com uma paisagem agora totalmente diferente, o lugar é cenário para muitos pais com crianças que brincam e adultos que utilizam os equipamentos esportivos, de forma especial a pista de skate frequentada também por jovens da Praia do Futuro e de bairros vizinhos. Casais de namorados aproveitando e apreciando o momento com o clima praieiro também compõem a happy hour.  Se antes a população rejeitava o lugar, agora, não quer sair de lá.

Por outro lado, mesmo com a reforma da praça e com um ambiente agradável e um ar de possível segurança, ela não se tornou imune às mazelas da vida urbana, o próprio espaço foi violentado por lixos, roubos e destruições dos quiosques.

Mesmo com as hostilidades encontradas e com o posto de policiamento (guarda municipal, bombeiros e policiais militares) já instalado, construído e em funcionamento de frente para a praia do litoral cearense e de costas para a praça, ela foi violentada, enquanto a vida no lugar ocorria. O mal planejamento e visão fizeram com que o descaso ocorresse. A polícia foi instalada no lugar devido a uma grande demanda e solicitação dos moradores à Secretaria Executiva Regional II para agilizar o desenvolvimento da obra.

A reforma estrutural da Praça 31 de Março e a mudança de hábito da comunidade ainda lenta vêm trazendo, aos poucos, inúmeros benefícios para todos. Como ocorre desde 2014 em algumas praças da cidade, a da Praia do Futuro também foi adotada como parte do Programa de Adoção de Praças e Áreas Verdes. O benfeitor é a rede de supermercados São Luiz.  

A reeducação vai além de um ação, mas parte do vínculo identitário adquirido com a tradição do lugar e o pertencimento a ele. A mudança não é apenas de um sujeito, mas de todos, amplificando, compreendendo e organizando os grupos envolvidos que carregam inúmeros sentidos sociais. A comunidade da Praia do Futuro é marcada por isso, pelos laços de unidade e luta pelos direitos das pessoas em realizarem atividades e desenvolverem ações que possam transformar a dinâmica da sociedade.

Atenta às necessidades da comunidade e trabalhando há muito tempo como agente de endemias, a funcionária pública e agora mais recente empreendedora de chocolate em Portugal, Maria José, aos 44 anos, desenvolveu laços de amizades enquanto trabalhava diretamente na comunidade com as famílias e ouviu muitas reclamações das pessoas. Com esse olhar preocupado, a empreendedora ajudou a transformar a nova praça, criando um conselho participativo de moradores com a intenção de implementar ideias, transformar vidas e ocupar o espaço da melhor forma.

Com a saída de Maria da liderança do projeto, os próprios moradores atualmente da praça 31 de Março continuam se mobilizando e se apropriado do lugar. É visível o crescimento  da feirinha de roupas com o artesanato local, montando também barraquinhas de comida, atraindo mais moradores que antes se encontravam escondidos em suas casas e temerosos com as lembranças das violências. A praça deixa de ser ameaçadora, ganhando com intensidade: lazer, coletividade, vida e liberdade.“Se em cada bairro duas ou três pessoas se juntassem pra fazer o diferencial os bairros seriam bem diferentes do que nós temos hoje”, garante a mobilizadora comunitária, Maria. 

Praça da Estação
Rua dos Tabajaras
Avenida Santos Dumont
Praça Dom Hélder Câmara

para o mar 

Reportagem
Larissa Pereira

Michel Miron

Fotografia
Filipe Pereira

Iury Figueiredo

Larissa Pereira

já teve uma má experiência ao dar entrevista, pois seu depoimento foi deturpado em um jornal local. Entretanto, o medo de Crash não se reflete no andar pelas ruas. 

Seu semblante leve passeia pelas Tabajaras desde a infância. Apesar do tempo, o artista nunca foi vítima de violência pela área. “Também porque tô muito presente na rua fazendo grafite e, às vezes, o que assusta muitas pessoas não me assusta. Em alguns momentos, eu tenho contato mais direto com a rua do que com as pessoas” – o que talvez não se repita entre outros frequentadores assíduos do local. 

Bruce vende bebidas alcoólicas à noite em frente ao Estoril, do lado da praia na rua indígena, e acredita que o local atrai povos de todas as idades. “Aqui só tem um pequeno problema: os furtos de aparelhos eletrônicos, carteiras e cordões”. Para o comerciante, falta policiamento e organização "principalmente em dias de muito movimento". 

Apesar do clima de insegurança compartilhado pelo comerciante, o calçadão do Estoril, que dá direto para a praia, é repleto de vida. Grupos familiares e de amigos dividem espaço com ciclistas e skatistas. Mesmo assim, a orla carece de cuidados, deixando à vista alguns ladrilhos sobressalentes, que podem atrapalhar a travessia de quem vem a pé ou sobre as rodas de patins e skates.

Basta olhar à esquerda que as paredes brancas fincadas em solo ancestral cedem espaço para o encontro com outra nação. A Ponte dos Ingleses é um marco da confluência não só entre as culturas, a terra e o mar, mas também entre os ouvidos de quem compartilha o som do quebrar das ondas com o das músicas entoadas por lá.

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