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Esse pensamento é a fonte de esperança de uma mente que habita, diariamente, o interior de um prédio velho, sisudo, como um passado que ainda é sentido com pesar. É a delicadeza do giz riscado em uma parede verde, no entanto, que colore e desenha um novo destino a cada manhã de labuta. É o traçado que suaviza e floreia um futuro visto pelos olhos do maior dos desejos: o de plena e pura liberdade.

Essas são as palavras de Jairo Arruda (nome fictício), um homem que passa seus dias ao lado de uma porta detectora de metais e em frente a algumas fileiras de bancos em um prédio feito de recomeços, a Coordenadoria de Inclusão Social do Preso e do Egresso. Lá os passos não cessam nunca, mas, para Jairo, o local de trabalho transmite um pouco de paz e de vitória após tempos sombrios na vida – gastos atrás das grades.

 

Os 32 anos dele guardam muitas histórias. Barman, pintor, supervisor de produção e até participação em um laboratório de próteses estão entre os ofícios que constam nas atividades profissionais de Jairo – iniciadas cedo, aos 12 anos. Entretanto, a pausa de três anos preso fez sua vida seguir por outros rumos: um curso de auxiliar administrativo o trouxe “de volta à movimentação” e rendeu a ele uma vaga na recepção do prédio. Embora esteja ganhando dinheiro, é a oportunidade de trabalho o ponto mais importante para quem sai do sistema prisional.

“Como que vocês querem ressocializar a pessoa que nunca foi socializada? Então assim, é bem delicada a situação, a questão da cultura da pessoa, a questão da própria ignorância, da pessoa achar que tudo tá limitado, que ele nunca vai ter oportunidades. Tem uma série de coisas que tem que ser trabalhadas antes, pra você chegar numa empresa. Porque, às vezes, a pessoa chega tão negativa que a coisa não consegue andar, não consegue dar certo”.

O serviço dele é o de guiar pessoas, seja apenas para um acompanhamento pela coordenadoria, seja para uma inscrição em um curso profissionalizante, assim como a que ele fez cerca de três anos atrás. Conseguir se achar após sair da prisão é uma tarefa difícil, mas conquistar uma chance depois de um crime e um julgamento pode ser ainda mais a sonhada liberdade, em vez de alívio, pode representar um martírio.

“Você sai da cadeia, sai sem uma perspectiva de nada na vida… E sabe que pra ex-presidiário ninguém, ninguém dá emprego. É raro. Só se for uma pessoa que se você tiver uma peixada mesmo, que conheça você”.

Essa angústia foi sentida lá no fundo do peito por outro funcionário da Coordenadoria, Lucival Barbosa. Após quatro anos e meio no presídio, ele conseguiu uma progressão para o regime semiaberto e voltou a conviver com a família, há quase três anos. Entretanto, não conseguiu retomar a vida profissional como motorista. “Depois que a gente sai, pra ter uma oportunidade, é difícil... Principalmente motorista, né?”.

Oito meses depois da mudança de regime, veio uma boa notícia: um emprego de jardineiro no Parque do Cocó, local onde ele aprendeu a preservar e observar a natureza sem a companhia da mulher e dos quatro filhos. “Você via os soins, você via as jiboias, as cobras passando”. A lembrança, porém, vem acompanhada de um momento de amargura. Quando estava prestes a assinar a carteira de trabalho, Lucival recebeu um não do juiz. O motivo era simples: ele não poderia ficar lá por causa da tornozeleira eletrônica. Mais difícil foi sentir uma marca se abrir em sua vida:

 

"Muitas vezes fiquei depressivo. Quando esse meu emprego lá não deu certo, de assinarem minha carteira, eu fiquei altamente depressivo, triste. Mas a gente pede força a Deus e esqueci, já. Ruim seria se a pessoa não estivesse trabalhando, desempregado".

As grades
guardam
medos

A fé fortaleceu Lucival e fez o dragão tatuado em seus braços se movimentar novamente: o momento de tristeza e frustração por estar sem trabalho terminou com uma oportunidade de emprego, concedida pela Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado. O acontecido trilhou seu caminho até o prédio movimentado, onde hoje, ao lado de Jairo na recepção, trabalha com faxina e serviços gerais.

Mas, mesmo com pontos em comum em suas vidas o tempo passado atrás das grades e o acolhimento profissional pela Coordenadoria , os dois passaram por experiências diferenciadas ao deixar a prisão.


Ao contrário de Lucival, Jairo não teve problemas em conseguir a autorização do juiz para trabalhar com a carteira assinada. A dificuldade pela qual passou teve relação direta com a empresa em que trabalhou ainda antes de se mudar com a família para Fortaleza  uma grande concessionária de motos próxima ao interior onde nasceu. Após passar pouco mais de duas semanas trabalhando na instituição, Jairo, na época em regime semiaberto, precisou de uma declaração que comprovasse seu novo emprego. Foi no momento de solicitá-la ao gerente que a situação mudou. “Ele enlouqueceu. Ele não sabia”.

Antes de entrar no emprego, Jairo passou por um processo de seleção com outras 30 pessoas, ficando em segundo lugar. No momento da contratação, o setor de Recursos Humanos da concessionária não atentou, mesmo com todos os documentos à disposição, ao fato de que o novo empregado ainda cumpria regime prisional. A descoberta resultou em sua demissão.

“Eu vejo tantos ex-presidiários altamente inteligentes, que poderiam dar tanto emprego e trabalho a uma empresa e eles não veem isso. Porque você errou uma vez, há anos atrás, e acha que... Não sei, na verdade eu não sei o que eles pensam”.

As grades vistas pelo outro lado

“Inicialmente, foi complicado” momento comum quando se fala em liberdade após a prisão. Mas se engana quem pensa que essa situação só ocorre para aqueles que estiveram atrás das grades. Quem passa a lidar com um egresso pela primeira vez também tem uma missão tão difícil quanto a procura de emprego após uma mudança de regime: perceber que um ex-presidiário é, acima de tudo, outro humano.

 

Luaniza Braz já esteve nesse cenário. A nutricionista, além de ensinar novos modos de se alimentar ao longo do ofício, teve de aprender a seguir outros hábitos saudáveis. Perceber o egresso com atenção, educação e respeito foi um de seus maiores aprendizados nos últimos dois anos.

 

“A única coisa que eles queriam era realmente uma inserção novamente, reformar a família, reconstruir esse laço com família ou afetivo no trabalho, também. É algo que podia se ver que todo mundo realmente não acreditava que podia ser diferente. Então eu também tive de aprender a acreditar”.

De mentes abertas, os dois lados se uniram e começaram a dividir novas experiências. Ela passou a coordenar 24 homens e 12 mulheres, todos saídos da prisão. Eles passaram a trabalhar como parte do processo de ressocialização em uma Unidade de Nutrição e Alimentação. No entanto, os egressos também foram responsáveis por outra tarefa: mostraram à Luaniza uma nova visão sobre quem já passou por um caminho errado de acordo com a lei.

 

“Em alguns momentos, houve um certo receio de como seria nossa convivência, mas no passar da nossa rotina, a gente acabou criando um vínculo, onde eu sabia que eu tinha de respeitar”.

 

O temor de Luaniza vinha junto à preocupação por parte da família. Dentro do local de trabalho, os ex-presidiários tinham acesso a facas e outros objetos cortantes, o suficiente para que os parentes dela ficassem preocupados pois “tudo poderia acontecer”. A preocupação, porém, seguia por via dupla: os egressos procuravam se comportar bem para não ter de voltar à vida encarcerada.

“Eles meio que tinham esse receio de não estarem se comportando dentro da unidade, não estarem respeitando a coordenação da unidade e isso infringir alguma coisa ou refletir em alguma penalidade pra eles”.

 

Essa precaução, junto às vistorias dos agentes penitenciários e assistentes sociais, deram suporte e firmeza ao trabalho conjunto entre a nutricionista e os novos trabalhadores. O que abria espaço a uma atuação comedida por causa do medo se transformou em uma relação de trabalho comum, na qual existiam até mesmo as observações nos momentos de erro ações que deixavam a nutricionista incrédula consigo mesma. “Eles viam que era uma relação respeitosa, que tinha um certo limite. Era sempre com esse clima de ‘eu quero te respeitar, eu quero te ajudar no que for possível’".

 

Embora pessoas como Luaniza possam cruzar os caminhos dos egressos, nem todos eles conseguem lidar com o trabalho da mesma forma após deixarem a prisão. Lucival Barbosa vê na própria vivência um dos possíveis obstáculos para esse fato: a falta de disciplina para lidar com a rotina árdua do cotidiano.

 

“Às cinco horas eu tô acordado e chego aqui é cedo: não é todo mundo que quer isso, não. Quer ganhar mole, quer ganhar fácil. Trabalhar não é pra todo mundo, não. É pra quem tem coragem, pra quem tem vontade, disposição. A Secretaria dá oportunidade, mas muitos deles não querem”.

 

Esse pensamento também é compartilhado por Jairo. Além de precisarem voltar a lidar com a rotina, os egressos costumam recebem menos que um salário mínimo por seus trabalhos, o que pode tornar a vida criminal mais atraente. “Nossos trabalhos dão ¾ de salário, R$ 600 e uns quebrados. E aí o cara vai lá, rouba uma farmácia e leva R$ 10, 15 mil. E aí?”.

 

Por ser uma situação delicada, o recepcionista acredita que a oferta de cursos e emprego é "essencial", porém a ressocialização precisa começar antes mesmo da saída do sistema prisional. É preciso que, ao fim da pena, “essas pessoas saiam melhor” e assim voltem a viver em sociedade de forma saudável.

 

Seguindo essa linha, a Coordenadoria oferece uma espécie de aula de etiqueta: noções de hierarquia e bons modos são mostradas em um processo educativo antes de os egressos entrarem em cursos de capacitação profissional que visam estimular o trabalho de diversas formas.

Esses e outros cursos são divididos em cinco núcleos que atuam tanto no prédio da Cispe quanto nas unidades prisionais. Mesmo com localizações e atividades diferentes, o propósito de todos eles é um só: gerar oportunidades para um futuro digno, seja de qual forma for.

 

Foi no curso de auxiliar administrativo oferecido pela coordenadoria que Jairo percebeu seu talento para lidar com as pessoas  “a gente vai se descobrindo, né?”. Há dois anos tentando o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), hoje sua ambição vai além e aponta para o desejo de fazer um curso superior. “Não vou fazer medicina, advocacia, porque eu não darei certo nessas áreas. Talvez eu seja jornalista, né? Já que eu gosto de conversar”.

 

Já Lucival ainda não encontrou um curso que o interessasse. Ele não se fecha à possibilidade, mas seu real desejo é voltar a trabalhar como jardineiro. “Eu gosto é da natureza. É o que eu gosto… Eu tenho fé em Deus que eu volto pra lá, porque o gestor gosta de mim lá. Na hora em que eu tirar essa pulseira, vai dar certo. Se Deus quiser”.

 

Enquanto não alcançam seus objetivos, ambos continuam no prédio da Cispe seguindo um conselho simples: levantar a cabeça e correr atrás. "Correr atrás e não fazer nada errado, porque não tem futuro”. Por não ser fácil se encaixar no mercado de trabalho após sair do sistema prisional, Lucival direciona seu conselho a todos os egressos que, assim como ele em tempos passados, se encontram sem perspectivas. “Corra atrás porque, senão, volta”.

Reportagem
Ana Beatriz Leite
Marcelo Monteiro

Fotografia
Marcelo Monteiro

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