top of page

O OUTRO 

A passagem do dia para a noite, marcada pelos ponteiros da Coluna da Hora, revela a dupla face da Praça do Ferreira. Durante o dia, o vai e vem de quem passa pelos arredores do cartão-postal ilustra o cotidiano frenético do Centro de Fortaleza. Em meio ao comércio e aos táxis que rodeiam toda a área ladrilhada, a multidão faz com que a presença de quem tem naquele local a própria morada passe despercebida.

Há pelo menos seis anos morando na Praça, Pedro é uma das pessoas que, após um dia de trabalho, descansa sobre o chão antes sobreposto pelos pés apressados dos transeuntes centrais. Abaixo de um telhado imaginário que pinta de estrelas o papelão utilizado como leito, ele habita o seu próprio canto no mundo na certeza de que aquele espaço é, para ele, a sua própria casa. Na realidade ou na virtualidade do lar, Pedro atiça, por meio do pensamento e dos sonhos, a memória e as lembranças de um momento anterior ao que hoje se encontra.

Foi na rua, distante dos muros que antes o abrigavam, que achou o conforto que não encontrava na família e no lar. “Família pra mim não presta não, a coisa pior que teve na minha vida foi família”. Na casa sem número, as cartas não chegam e as memórias são cicatrizes que ele carrega no corpo – “só tô vivo porque Deus quer”. As marcas, deixadas por irmãos, sobrinhos e outros familiares sob o efeito do álcool, são a materialização dos motivos que o levaram para as ruas.


A narrativa de Seu Pedro é apenas uma das histórias de violência física e simbólica que são compartilhadas por muitos outros citadinos. Algumas são decorrentes de casa; outras, da rua. Apesar disso, a resistência às adversidades da vida o levou a adotar a cidade como lar e a não se envergonhar disso, sempre na tentativa de poder sonhar em paz. “Se eu tiver no banco, se eu tiver andando no ônibus, se eu tiver em qualquer canto, eu digo que eu sou morador de rua”. 

A violência permeia a vivência destas pessoas pelo simples fato de terem a rua como o seu espaço. Se a Coluna da Hora representa para Pedro o pilar que sustenta o seu próprio universo, o Cuca Mondubim é, para o jovem Claudeci Félix, o refúgio de uma vida urbana permeada de preconceitos.

Estudante de audiovisual da rede de equipamentos de incentivo à arte e à cultura da Prefeitura de Fortaleza, Claudeci tem dentro de si uma tribo mais complexa: a de ser da periferia. Dentro dela, diversos perfis se conectam pela cor, pela realidade socioeconômica e pela vontade de preservar os laços e a comunidade a que pertencem.

Ao longo de seus 20 anos, apesar da memória fraca, ele já foi alvo de diversas ações policiais que o enquadravam como alguém a ser temido. Ao sair do refúgio em que utiliza a arte para se expressar, usando uma camiseta e um boné de aba reta, “flagrantoso”, Claudeci decidiu voltar para casa através de um caminho que passa por dentro da comunidade em que se criou.


Na entrada da periferia na Messejana, policiais faziam a ronda em uma esquina, mas resolveram voltar os olhares a ele. Ao dobrar por algumas ruas, Claudeci foi surpreendido quando deu de cara com um militar correndo em sua direção com uma pistola em punho. Mesmo havendo várias pessoas na rua, ele foi o único abordado. “Eles queriam que eu fosse quem eles imaginavam, porque se eu não fosse, seria sorte minha porque 'eu iria sair dali bem'”.

Mas não foi por policiais, nem na rua que o jovem se sentiu mais indefeso e atacado por se vestir da forma que se sente bem. O trauma mais recente a que ele passou ocorreu sob os olhos de Iracema, a virgem dos lábios de mel que habita a lagoa da Messejana, mas observa os ônibus que se movimentam para um mesmo terminal. 

Mesmo que perfis como os de Pedro, Claudeci e Ferreira permeiem o imaginário dos moradores de grandes centros urbanos, a socióloga Suiany de Moraes chegou à conclusão de que, na verdade, a violência não tem um perfil específico. “Quando você vai pegar os dados estatísticos, os boletins de ocorrência e vai analisá-los, você percebe que o crime, a violência na cidade não tem um perfil. É preto, pobre, é mulher, é branco, é dos olhos verdes, é loiro”.


Na sociedade, é preciso se encaixar nos “padrões que a família tradicional brasileira considera como certos”. Para a pesquisadora, os estereótipos citados são nada mais que uma construção social refletida a partir de uma cultura do medo. “Você vai olhar pro outro que é diferente com outros olhos, você vai achar que o outro é sempre o perigo.” No entanto, há quem busque conhecer de perto esses perfis, na intenção de fazer com que o estranhamento do outro se transforme em afeto.

Nas sextas-feiras noturnas, além do cansaço de moradores que esticam as pernas nos bancos repletos de história da Praça do Ferreira, as ruas centrais recebem integrantes do Grupo Espírita Casa da Sopa. A ação, coordenada por Fernando Oliveira, que poderia ser só a distribuição do alimento, funciona como um local de atenção à pessoa em situação de rua porque “se observou que o trabalho não encerrava ali”. 

Apesar de a entrega só ocorrer quatro vezes durante o mês, a sopa fideliza o grupo de moradores, que tem, no momento da ação, a sede de uma conversa que poderia durar horas ou noites inteiras.


Conversar com o outro também é uma das técnicas de Anna Caroline Santos. Pesquisadora em moda, periferia e movimentos sociais, ela tenta perceber a identificação de jovens da periferia com as roupas que eles vestem. Quando foi apresentar seu projeto na turma de pós-graduação em que estuda, porém, foi recebida com risadas. “A gente acabou distorcendo uma cultura, uma identidade cultural e transformou isso num tabu tão forte que, por mais que as pessoas conversem sobre isso, acabam que fica na chacota”.


Além da dificuldade de trabalhar com uma pesquisa em que os próprios entrevistados não entendem o porquê de estarem sendo questionados, Caroline já foi assaltada oito vezes por jovens que se encaixam no estereótipo. No entanto, apesar das discordâncias entre familiares e amigos e do receio que eles têm, ela continua acreditando no projeto, pois "uma maioria paga por uma minoria".


A mesma opinião é compartilhada por Ivna Magalhães. A psicóloga já trabalhou com medidas socioeducativas específicas para adolescentes em conflito com a lei. “Tinha alguns meninos que andavam com eles e não roubavam, ou que moravam perto, eram do bairro, e sofriam o mesmo preconceito por causa da aparência”.


Pela força da cultura do medo, o temor e o preconceito “estão imbricados; eles não estão separados, estão pertinho ali, pois um leva ao outro”, considera Ivna. A violência na cidade existe e, por mais que vivamos “num mundo em que a gente tem de estar ligado”, não podemos nos deixar tornar paranoicos. De acordo com a psicóloga, a melhor forma de superar isto seria, portanto, "por meio de autorreflexão, de autocuidado, de amar mais, trabalhar melhor as relações para que haja mais confiança no outro”. Não é um exercício fácil, porém, já que o mundo é dividido com outros, todas as medidas em função da melhoria da convivência são válidas.

Fora dos padrões

NA CIDADE

Foi do terminal da Messejana e de outros quatro que mantêm a rota dos coletivos de Fortaleza que perfis como os de Claudeci e Pedro foram citados como estereótipos de pessoas que causam medo. Em meio ao incessante entra-e-sai de motoristas, cobradores e usuários de transporte público, o Espiral ouviu as tribos serem expostas pelas pessoas em situações diversas nas suas próprias vidas. Mas, além dos jovens e da população em situação de rua, foi de volta à Praça que um outro Ferreira – esse motorizado – corroborava com mais um perfil apontado. 

 

Carlos Eduardo Ferreira resolveu optar pelo uso da moto há quatro anos para fugir do trânsito caótico de Fortaleza. Pela mobilidade fácil, ele realiza verdadeiras procissões pela cidade para levar os bolos e salgados que produz em sua própria casa.

Ainda que o veículo funcione tanto como meio de trabalho, quanto para o transporte da família, o motociclista já observou alguns movimentos bruscos de pessoas enquanto ele estava no trânsito. Ao passar próximo a um colégio ou a uma parada de ônibus, ele teve essa certeza. “Você percebe que as pessoas têm aquele temor quando você se aproxima. Tem até gente que esconde a bolsa com medo”.

Para se defender dos olhares tortos, Carlos Eduardo usa o capacete – mesmo sendo "o que mais dá medo nas pessoas” – enquanto dirige pelas ruas de Fortaleza. Por isso, ele não consegue imaginar uma forma de como esse preconceito possa deixar de existir. “Não inventaram isso ainda, não”.

Reportagem
Ana Beatriz Leite

Cadu Freitas

Fotografia
Cadu Freitas

Marcelo Monteiro

Ilustração

Filippe Teixeira

História em quadrinhos

Davi Ferreira

bottom of page