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A batalha pela terra
A luta contra os colonizadores teve início em 1500 e segue por décadas com perdas, retomadas e vitórias
A luta pelo direito a um pedaço de chão para chamar de seu é a sina de milhares de brasileiros que vêm reivindicando o direito à terra há séculos. Nos primórdios, os que aqui estavam defendiam suas terras do estrangeiro, o português, o holandês e outros europeus que esse solo desejaram. Séculos se passaram e o inimigo agora é outro. É o Estado, o mercado imobiliário, o resort, a indústria, enfim, o capital, cuja ganância quer tomar à força um lugar que ainda está inexplorado.
Essa batalha é travada pelos indígenas, que já puderam usufruir livremente do território brasileiro e agora, ironicamente, precisam comprovar o merecimento à terra e garantir juridicamente a área onde residem.
Em 2017, poucos sabem, mas essa ainda é a peleja de quase 897 mil indígenas distribuídos em todos os campos de disputas do território nacional. A região Nordeste se destaca ao concentrar 126,6 mil combatentes fora de suas terras. A contenda, antes contra os colonizadores, hoje tem outras frentes de guerra e o inimigo vem de todos os lados. O duelo pela disputa de terra se estende para além do campo jurídico e incorpora confrontos pelo reconhecimento dos protagonistas nessa briga.
O Instituto Socioambiental (ISA) revela que há 706 terras indígenas no Brasil em diferentes fases do procedimento demarcatório. Destas, 110 se encontram na fase da identificação. Existem 42 terras identificadas com relatório de estudo aprovado pela presidência da Funai e outras 74 terras têm a Portaria Declaratória expedida pelo Ministério da Justiça, o que garante aos guerreiros que aquele local é deles por tempo indeterminado. No total, apenas 480 terras foram conquistadas e demarcadas.
No Ceará, a população indígena é composta por 22 mil combatentes divididos em 14 etnias. Dessas, somente três, a Pitaguary, Tremembé e a Tapeba, estão entre as 74 que possuem Portarias Declaratórias publicadas e nenhuma tem a homologação de suas terras. De acordo com o levantamento realizado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), em 2014, mais de 6,6 mil índios tapeba habitavam a localidade de Caucaia, região metropolitana de Fortaleza, divididos em 18 aldeias. Os tapeba se destacam na peleja por serem os primeiros a pedir a demarcação, confronto que se arrasta por quase 40 anos, entre batalhas perdidas, ganhas, voltas por cima e reconquistas.

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DEMARCAÇÃO
Espiral 2017.2
Uma produção dos Laboratórios de Jornalismo Multimídia e de Telejornalismo do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará
Textos:
01. Ana Carolina Vieira
02. Karoline Gomes
03. Sabrina Teixeira
Animação:
Isabela Santana (roteiro)
Casa Amarela
Fotografia:
Isabela Santana
Jefferson Cândido

LUTA DE 40 ANOS
“O significado da palavra Caucaia é justamente mata que se queima, que foi o que aconteceu com a cidade conhecida por esse nome atualmente. No início, os índios ocupavam todo o centro do município, que foi sendo desmatado e queimado com o passar dos anos para o avanço da contemporaneidade. Deste modo, os indígenas foram jogados para os arredores, onde ninguém queria viver e foram perdendo espaço”, explica a engenheira de pesca, Soraya Tupinambá.
De fato, o território dos tapebas atualmente é quase sete vezes menor do que era inicialmente. “Nós tínhamos 36 mil hectares que foi diminuindo até chegar aos 5.228 que temos hoje devido à construção da cidade de Caucaia dentro do nosso espaço”, afirma Dourado Tapeba, representante da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME).
A ida à batalha se deu em 1980 e somente três anos depois o grupo montado pela Funai entrou em ação para identificar quais áreas seriam demarcadas. Em 1986, uma Portaria publicada não reconhecia os 4 658 hectares como terra indígena mas como colônia agrícola, neste caso, o espaço deveria ser dividido entre índios e posseiros. A decisão não agradou aos indígenas que não desistiram de lutar e após um novo estudo, o relatório de declaração das terras tapebas foi oficializado pela Funai em julho de 1993.
Quatro anos depois, houve uma tentativa de demarcação barrada pelo inimigo com inflûencias políticas que impactaram na decisão do Supremo Tribunal de Justiça. “Ele entendeu que o prefeito (Arruda) tinha razão, mas ele não viu ou estudou o processo. Ele tomou a decisão sem nem ler e nós perdemos novamente”, esclarece Dourado.
Em 2008, novos aliados apareceram e os tapebas apoiaram Washington Luiz, candidato à prefeitura de Caucaia, que ganhou a eleição e retirou o processo alegando que “a cidade de Caucaia deveria ter orgulho de ter um povo indígena dentro do município. Além disso, ele criou uma coordenadoria específica para discutir questões indígenas, a partir daí a gente começou a ter vitórias”, afirma Dourado.

“Peixe fora d’água”
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“O nosso objetivo enquanto índio não são coisas materiais, é um patrimônio que nossos antepassados deixaram pra nós: a terra. É em cima dela que nós construímos nossos bens materiais, como nós sobrevivemos. E se nós não tivermos isso em nossas mãos, não temos mais nada. É como o ditado popular diz, peixe fora d’água é índio sem terra”, este é o desejo de Madalena Pitaguary, líder do povo Pitaguary há 23 anos.
As pedras insistem em dificultar o percurso em busca das terras que lhes pertencem por direito. Os Tapeba não se organizam no espaço de forma centralizada, mas possuem pequenas comunidades espalhadas em espaços que foram sendo retomados ao longo do tempo. Ainda no começo de 2017, o Tribunal Regional Federal concedeu uma liminar, por pedido de proprietários de terras, para que a comunidade do Trilho fosse removida. Revoltados, os Tapeba resistiram e protestaram para que a remoção não ocorresse.
O auge da luta foi quando, por ocasião de uma visita à Fortaleza da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carmem Lúcia, , os Tapeba conseguiram entregar ao assessor da ministra uma carta que explicava a situação. A ministra Carmem Lúcia tomou conhecimento do caso, e ela, sendo literalmente a única pessoa capaz de fazer algo, suspendeu a liminar.
Os tapebas comemoram com vivacidade essa pequena vitória, e reconhecem a necessidade de não desistir e continuar lutando com as armas que tem, embora a disputa pelo próprio espaço seja árdua e lenta, e a busca por respeito constante.
O INIMIGO
Ao longo dos anos, a família Arruda dificultou o processo de demarcação das terras Tapeba. Eles residem na localidade de Caucaia, detinham força política na região e ocupavam uma enorme quantidade de terras, estas reivindicadas pelo povo Tapeba. Em virtude do conflito de interesses, a família de posseiros travou constantes conflitos desde o início dos trâmites legais. “Em 97, a terra foi demarcada como está hoje, mas o prefeito na época era José Gerardo Arruda Filho e, segundo ele, os índios atrapalhavam o crescimento da cidade”, relembra Dourado. O ex-prefeito Arruda Filho foi procurado mas não quis declarar nada sobre o assunto até a conclusão dessa edição do site Espiral.
A trégua veio anos depois com a assinatura do termo e a divisão das terras, em fevereiro de 2016, quando a família não estava mais no poder. O pacto pôs fim à guerra entre a família Arruda e os Tapeba, e acelerou o processo da demarcação mesmo com redução de 500 hectares do território original. “A gente sabe que a terra é pouca mas se nós não tivéssemos feito esse acordo, não tínhamos conseguido a demarcação ”, reconhece o líder indígena.
O pacto e a divulgação da portaria foi mais uma vitória que beneficia a luta Tapeba por direito à terra, de acordo com o antropólogo Sérgio Brissac. “Na prática, ela não significa ainda a demarcação mas representa a segurança judicial de que nenhum novo empreendimento ou ocupação não-indígena poderá acontecer na área.”, explica o antropólogo que aponta a existência de residências e propriedades não-indígenas como um dos principais obstáculos para a consolidação da demarcação.

Sem a portaria declaratória das terras Tapeba, os inimigos surgem de todos os lados e a insegurança cresce à medida que a Polícia Federal alega deter autorização para entrar no território apenas em situação de conflito fundiário. A falta de policiamento resulta na proliferação de assaltos, depredação de carros, além de casos de sequestro e extermínio de pessoas, é o que relata o vereador de Caucaia, Weibe Tapeba. “Com a portaria declaratória acreditamos que teremos mais força para cobrar, não há nenhum impedimento legal que impeça a Polícia Militar de atuar na nossa área, na realidade, a Polícia deve atuar de forma articulada”, ressalta.
Os próximos passos para a demarcação são: a indenização, por parte da Funai, de todas as benfeitorias não-indígenas que foram construídas anteriormente ao pedido oficial de demarcação; a efetiva desocupação de todas essas benfeitorias não-indígenas; e a homologação via decreto presidencial. As próxima etapas ainda devem levar tempo, em especial porque dependem da cooperação de agentes externos que podem não simpatizar com a demarcação ou concordar com o direito à terra Tapeba. “Serão alguns anos até o usufruto que a Constituição garante”, confirma o antropólogo.
Dourado reconhece a lentidão do processo que deveria durar três meses, entretanto espera que a tramitação não ultrapasse um ano. “São 37 anos de demora e a gente espera vencer esse quadro, é difícil porque ainda vai ter gente querendo entrar na justiça mas a portaria foi publicada com muita consistência, vai ser difícil derrubar”, admite.
Assim como os Tapebas enfrentam inimigos visiveis e invisiveis diariamente, que se levantam há quase 40 anos para lhes tirar o que é seu, milhares de indígenas brasileiros também lutam arduamente e incessantemente para garantir a construção e perpetuação de uma cultura, uma identidade, um povo e uma terra.
MÚLTIPLOS INIMIGOS

Desde a sua criação, em 1967, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem atuado nos “estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, além de monitorar e fiscalizar as terras indígenas”, assegurando a proteção destes povos. No entanto, na última década, o órgão tem passado por dificuldades, tanto financeiras quanto políticas.
Com os cortes orçamentários na instituição, impostos desde o governo Dilma (2011-2016), a Funai vem tendo seu funcionamento comprometido. O governo Dilma foi a gestão que menos demarcou terras indígenas desde o governo de José Sarney (1985-1990). Foram apenas 21 homologações, 25 declarações e 44 delimitações de terras num período de cinco anos. Processo que foi ainda mais dificultado pela grande oposição ao governo petista nas casas legislativas.
Já no governo de Michel Temer, a crise na Funai vem se aprofundando. Em mais de um ano de gestão, o atual governo promulgou Portaria Declaratória de apenas uma terra indígena no país, a da tribo Tapeba, de Caucaia, no Ceará. O governo Temer ainda extinguiu 347 cargos comissionados da Funai no último ano, o que tem prejudicado o funcionamento da instituição. De acordo com o Instituto SocioAmbiental (ISA), sete das 26 bases de proteção aos índios isolados foram fechadas nos últimos anos, enquanto outras operam com precariedade.
A Funai tem ainda tornado-se objeto de disputas políticas dentro do governo federal por sua considerável influência em questões de desenvolvimento. Uma demonstração dos embates que envolvem a Funai foi a exoneração de Antônio Costa da presidência do órgão em maio de 2017. A destituição de Costa veio após o mesmo negar-se a nomear para cargos na instituição apadrinhados políticos indicados pelo então ministro da Justiça, o ruralista Osmar Serraglio. “A Funai está fragilizada. Ela foi esquecida pelo Estado brasileiro, não só pelo atual governo, mas também pelos anteriores, que deixaram a instituição em uma situação caótica”, declarou Antônio Costa em entrevista coletiva após sua exoneração.
Cortes orçamentários, obstáculos processuais e disputas políticas ameaçam o funcionamento do principal órgão indigenista brasileiro
Mesmo golpeada, Funai precisa resistir
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Edward questiona ainda a identidade do povo Tapeba como indígenas diante do crescimento da população desta tribo. “Não é estranho que esse movimento tenha crescido tanto nos últimos 15 anos? O que será que está por trás desses interesses? Isso seria justo que o interesse dessa minoria da população se sobreponha ao interesse da maior parte da população de Caucaia? [...] Por que que você, cidadão caucaiense, nunca foi perguntado se reconhece esse povo como indígena? E se reconhece como justa a demarcação dessa área como sendo indígena, podendo vir a afetar todo o desenvolvimento de Caucaia e da região noroeste do estado do Ceará”, provoca Luz.
Identidade Tapeba Questionada
Em 3 de outubro, dia do Povo Tapeba, o antropólogo Edward Luz, anti indigenista e presidente da Missão Novas Tribos, convocou a população de Caucaia para uma audiência pública realizada no último dia 6 de outubro. Ele questiona a Portaria Declaratória 734/MJ/2017 publicada no Diário Oficial da União (DOU) que, assinada pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, declarou uma área de 5.294 hectares como de posse permanente do grupo tapeba.


Outras medidas que enfraquecem a proteção aos indígenas e às suas terras estão em debate no poder legislativo. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 pretende transferir da União para o Poder Legislativo a decisão final sobre a demarcação de terras. Assim, a homologação de demarcações deixaria de ser responsabilidade do presidente da República e passaria a ser pauta de votação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Se aprovada, tal medida pode tornar ainda mais burocrática e política a demarcação de territórios indígenas.
O Projeto de Lei Complementar (PLP) 227 também interfere na preservação do território indígena, pois regulamenta situações em que não-índios podem explorar terras indígenas, o que vai contra o parágrafo 2º do Art. 231 da Constituição Brasileira. Ainda há a portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU) que impõe condicionantes a todos os processos de demarcação, como por exemplo proibir a ampliação de terras já demarcadas e autorizar que estados e municípios participem de todas as etapas do processo de demarcação.
E a atual descaracterização da Funai atinge todos os seus níveis hierárquicos. A Coordenação Regional de Nordeste II, responsável por 14 tribos indígenas do Ceará, está com seu funcionamento comprometido desde março deste ano. Quando a nomeação de Tanúsia Maria Vieira para o cargo de coordenadora regional foi contrariada pela maioria das comunidades indígenas da região, que ocuparam o prédio do órgão por 51 dias, até que a nomeação fosse revogada. Atualmente a Coordenação segue sem direção, e, consequentemente, com entraves no seguimento de seus processos.
“A gente vê que a Funai tá sucateada, estivemos ocupando a Funai por 51 dias para não deixar que a indicação política tivesse respaldo, porque a indicação tem que ser feita pelos índios que conhecem a luta”, afirma Dourado Tapeba, líder da tribo Tapeba, que participou do movimento de ocupação da unidade da Funai em Fortaleza.
A situação dos povos indígenas brasileiros tem sido monitorada por instituições internacionais que atuam pela preservação de direitos destes povos. A ONU, em sua mais recente sessão do Conselho de Direitos Humanos, realizada dia 5 de maio de 2017, expressou preocupação com os recentes conflitos de terras ocorridos no Brasil. No relatório divulgado pelo Conselho, são feitas recomendações ao governo brasileiro a fim de garantir a proteção da cultura indígena e a demarcação de terras.
Enquanto isso, em março deste ano, a presidência decretou o contingenciamento de 44% do orçamento do Ministério da Justiça e órgãos vinculados à pasta, o que inclui a Funai. Com isso, de acordo com o ISA, a Funai tem passado por “dificuldades até para pagar as contas de água e luz, forçando a desativação de sedes, o cancelamento de operações e a não efetivação de funcionários concursados”.
Contudo, apesar do cenário desanimador, a população indígena e os funcionários do órgão seguem na luta para que a missão institucional de “proteger e promover os direitos dos povos indígenas, ao estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista” atribuída à Funai desde a sua fundação seja cumprida. Para o povo indígena é fundamental que a Funai resista às pressões que vem sofrendo e que siga ao lado dos índios na defesa de suas terras.