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Um mundo encantado

Práticas espirituais entre os Tapeba têm uma estreita relação com a natureza, onde buscam neste contato com o meio ambiente os ensinamentos dos seres que povoam o universo sobrenatural

A pajé Raimunda Tapeba me apresentou os Encantados enquanto conversávamos numa tarde quente de setembro, no alpendre da casa do seu filho Francisco Rodrigues Teixeira, na Comunidade da Ponte, às margens do Rio Ceará, município de Caucaia.

Os Encantados, explicou, em linguajar que eu, um católico, pudesse entender, de forma simples, "são como espíritos das florestas. Eles podem aparecer como animais, plantas, fumaça, vento e têm a responsabilidade de proteger as pessoas, a natureza e os seus elementos". Para a pajé, a maior característica desses seres é o respeito, pois é a valorização das qualidades do próximo e de seus direitos. "Eles respeitam o território do outro, sob a pena de causar grandes desastres. E isso temos de levar para a vida. Quando desenvolvemos o respeito, olhamos para pessoas, situações de modo diferente".

Segundo a tradição Tapeba, quando Deus andou pela Terra achou uma série de guerreiros de aldeias diversas e aos quais  quis atribuir a honra de tornarem-se Encantados ao morrer. E na lagoa, ao serenar, o índio tornou-se parte da natureza, determinando assim, como um guardião, auxiliando por meio  da Jurema, a descoberta do desconhecido: que cura, que abraça e que alimenta.

Os Encantados andam pelo mundo encontrando novas aldeias e novas provas, respondendo aos anseios e aflições dos indígenas. "Eles ensinam como caçar, como cultivar a terra para conseguir o alimento. Eles mostram onde estão as plantas que curam febre amarela, gripe, malária e até essa doença nova, a chikungunya", revela a pajé.

Os Encantados, contudo, não são eternos. Só existem enquanto sua história for  contada. Sua existência é garantida cada vez que um de seus descendentes lembra de seus feitos e os passa adiante. Nem todos têm o dom de ter contato com os Encantados. Dona Raimunda teve essa experiência aos 14 anos. "Era mocinha, quando, na sombra da Jurema, vi um encantado. Fiquei apavorada nas primeiras vezes, mas sabia que era um dom".  À luz da crença indígena, era Deus perto dela, para que a mesma continuasse a perpetuação da cultura.

A memória faz o Tapeba estar presente na natureza. Os índios encaram a lembrança dos Encantados e até mesmo dos entes queridos que partem como uma forma de superação da morte. "Não há morte, há uma passagem. E a pior morte é aquela que vai para o esquecimento".

Espiritualidade
Tradição Oral
Culinária
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TRADIÇÕES E COSTUMES

Espiral 2017.2

Uma produção dos Laboratórios de Jornalismo Multimídia e de Telejornalismo do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará

Textos:

01. Ideídes Guedes

02. Ana Carolina Vieira

03. Sabrina Teixeira

04. Karoline Gomes

05. Felipe Klisma

Infografia:

Faruk Segundo

Fotografia:

Felipe Klisma

Ideídes Guedes

Jefferson Cândido

Sabrina Teixeira

Indumentária

Raimunda lembra  que seus antepassados diziam que os encantados eram o "encontro de Deus com os índios". Deus, Tupã, Oxalá, a religiosidade indígena não professa uma única divindade, é politeísta como uma grande maioria dos grupos religiosos espalhados pelo mundo. Há somente três religiões monoteístas no mundo: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Cada grupo indígena tem seus próprios deuses, mitos, lendas, rituais e cosmovisão.

Os transes, invocações e domínio dos espíritos são sabedorias de Dona Raimunda. "Não sei o que se passa quando recebo um espírito. É como um sonho. Acordo e descubro o que aconteceu com as pessoas que estão ao meu lado", conta.

Os Tapeba possuem na figura da pajé um elemento religioso de primeiro plano. Para a comunidade, dona Raimunda é, ao mesmo tempo, médica, sacerdote, psiquiatra, pois ela cura, dirige as preces, aconselha, empregando não só ervas medicinais como também o transe extático (um evento catártico), no qual entra em contato com os espíritos, intercedendo por aqueles que chegam até ela pedindo a ajuda de outro plano, sejam indígenas ou não.

POLITEÍSTAS

"A Jurema fornece a folha, o caule e a semente, tem o tempo de tiragem, não é todo tempo que pode tirar a Jurema. A Jurema é tirada na lua nova com as folhagens novas, porque se você tira a Jurema amadurecida, ela não tem aquela energia das folhas novas e também a gente trabalha pela Lua, os astros. A Jurema transmite toda energia, vamos pela Lua porque se cortar o cabelo na lua minguante, o cabelo míngua, lua cheia o cabelo cai. E se desgalhar a Jurema antes ou depois da lua nova, atrapalha a vida daquela pessoa, tem o tempo para fazer isso".

 

"Existem dois tipos de Jurema: aqui tem a Jurema branca, em outros locais encontraremos a Jurema preta. A diferença é que uma tem a casca branca e a outra a casca encarnada. A preta tem  efeito mais forte, tem mais energia na espiritualidade. Só quem pode mexer com a Jurema preta são os pajés. A valorização da planta foi através dos nossos pais, de geração em geração que cultivavam a Jurema, o Toré e os costumes, passando de geração em geração através da fala, os artesanatos a significação das sementes, de plantas medicinais, para que serve qual doença que cura. E a gente vai se apegando a cultura através dos Pajés, dos Antigos, que vão ensinando e a gente vai gravando todo ensinamento para quando aparecer uma pessoa a gente saber", explica a pajé.

Anualmente, durante as comemorações da festa da Carnaúba, é realizada a cerimônia de batismo, apresentando os novos integrantes da comunidade.

 

Na cerimônia indígena, o padre é substituído por um rezador. Os preparativos começam na coleta de ervas medicinais, que são trituradas e depois diluídas em um balde de água. "Primeiro a gente benze as ervas e a água que será utilizada no batismo. Depois preparamos uma fogueira e jogamos folhas para fazer fumaça", diz Antônia Tapeba, rezadeira.

 

"A fumaça espanta os maus espíritos e a água serve para proteger contra vários males. No batizado, a água com folhas é esfregada na cabeça e a gente invoca os Encantados, pedindo proteção", acrescenta.

 

Porém, quase cinco séculos depois da tentativa de genocídio cultural utilizada pelos portugueses no período do Colonialismo, o impacto cultural da religião do homem branco nos indígenas ainda gera debates e causa polêmica, principalmente pelos grupos de diversas religiões que frequentam tribos, conquistando novos fiéis dentro das aldeias. Uma realidade presente nas comunidades Tapeba, onde cresce o número de igrejas pentecostais.

 

"Na minha opinião, acho que todas as religiões merecem respeito. As nossas crenças foram atacadas por essas igrejas. Começaram a falar que não é certo dar continuidade à nossa religião. Isso vem trazendo um grande impacto na nossa comunidade", fala a pajé Raimunda.

BATISMO

Tradição Oral

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O ser humano sempre apresentou a necessidade de passar para os seus descendentes o conhecimento adquirido durante a vida bem como suas experiências. Durante séculos, enquanto a escrita ainda não havia surgido, esse processo acontecia quase que exclusivamente através da fala. De pai para filho, de filho para neto, de neto para bisneto, as histórias se perpetuavam e as mais emblemáticas, quando ninguém mais conseguia dizer em que época se passou e quem começou a contá-la, se tornavam lendas.  

 

A transmissão de conhecimento pela oralidade ainda é muito valorizada pelos indígenas, incluindo os Tapebas. Em meio à contemporaneidade, num momento em que a cultura do branco influencia com força a rotina dos índios, a tribo em questão mantém o costume de reunir os mais novos com os mais velhos e fazer momentos de trocas, de preservação da própria cultura e, principalmente, da própria história.


A escola indígena é uma das principais ferramentas utilizadas para fortalecer a identidade do índio tapeba, de acordo com Ismael Oliveira, professor indígena. "Essa educação diferenciada vem justamente para facilitar essa transmissão de conhecimento próprio da nossa gente e também devido ao preconceito sofrido pelo nosso povo dentro das escolas dos brancos", afirma.

Ismael revela que em algumas aldeias as escolas promovem noites culturais, em que a comunidade é convidada a participar das atividades. Os mais idosos, conhecidos como troncos velhos, estão sempre presentes nesses momentos para deixar a experiência ainda mais rica. "Valores sobre a nossa história, a medicina tradicional, a cultura mística, o irreal, são repassados com o objetivo de enraizar a ideia do pertencimento nosso", dispara o indígena.

Não somente os adultos e anciãos reconhecem o valor da tradição tapeba. Alguns jovens já se mobilizam para que algusn valores sejam retomados e outros preservados. João Kennedy Tapeba, coordenador da Associação de Jovens Indígenas Tapeba (Ajit), dispara que a maioria das histórias contadas são sobre a origem do povo e as batalhas enfrentadas em momentos familiares. "Normalmente são histórias sobre alguma retomada, algum encantado, sobre a Mãe Terra, sobre tombamento dos nossos ancestrais.  Nós sempre organizamos rodas de conversas e fazemos questão de convidar alguma liderança ou tronco velho para tirar dúvidas e manter viva nossa tradição", pontua João.

Kennedy diz que pretende repassar o conhecimento que já foi transmitido a ele para os jovens que coordena e para seus filhos e netos. "Mas as histórias que eu espero poder contar no futuro são relatos de vitórias do nosso povo, de conquistas, de momentos felizes e não mais de sofrimento".

Confira uma das histórias tradicionais do povo indígena Tapeba.

Indumentária e Tradição

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Da mandioca ao caju: os sabores brasileiros na mesa Tapeba

Se a base da cozinha brasileira mescla sabores, texturas e significados dos mais diversos lugares do mundo oriundos do fragmentado processo de colonização, a mesa do povo Tapeba conserva as raízes do que é nosso, ainda quando a identidade de [ser] brasileiro enfrentava percalços para se estabelecer. A tradição do cultivo do milho, do caju e da mandioca sustentam a base de preparo da maioria dos pratos da alimentação tradicional indígena.  

 

Assim como o processo de demarcação das terras leva tempo e percorre etapas, o preparo dos alimentos exige a sublime arte da paciência e do cuidado no manuseio dos ingredientes. O caule do pé da mandioca é a maniva, o qual, cortado em pedaços, é usado no plantio. Ela dá origem à mandioca que demora um ano para finalmente ser colhida. A semente lançada resulta no milho que no tempo certo vira canjica, mungunzá e bolo de milho. Do pé de cajueiro sai o principal ingrediente do mocororó, bebida tradicional tapeba. Tradições que representam a perpetuação da cultura e identidade de um povo.

O modo de preparo dos alimentos é passado  de geração em geração, na receita do mocororó que o professor de matemática, Josimar do Nascimento, sabe de cabeça ao recordar a jornada que percorre o caju após ser colhido. No meio do caminho, há duas bifurcações: ser enterrado ou o cozimento. Na primeira opção, o caju cortado tem o sumo retirado e transformado em suco. É na garrafa que ele aguarda o tempo de fermentação, enterrado de três a sete dias no sol.

 

No cozimento, o suco de caju é fervido e misturado à resina extraída do cajueiro. Quanto aos segredos de preparo,  Josimar garante que não coloca álcool embora saiba que “por aí o povo altera”. Outros confirmam que em grande quantidade a bebida tem os seus efeitos. Margarida Tapeba faz o mocororó há mais de 16 anos e alerta para a coloração, quanto maior o tempo de fermentação, mais escura e forte a bebida fica.

 

A “ciência” dos preparos também rodeia a  receita do bolo de milho, praticamente  um segredo a ser desvendado. No fim da massa existe uma parte mais cremosa, o sabor difere do tradicional e surpreende, embora os indígenas afirmem que a receita é semelhante ao bolo que  todo bom cearense conhece desde pequeno. É um enigma gastronômico identificar o que faz o bolo tradicional de milho ser dividido em duas camadas, sendo a inferior com aparência e textura cremosa. O milho ainda pode vir assado no fogo à lenha, na canjica com canela, na pamonha enrolada na folha do milho, ou no mungunzá misturado ao leite condensado.

A farofa causa espanto e curiosidade logo ao se ouvir o nome. A dificuldade para a realização da receita está em capturar a cobra. Após isso, ela é cortada aos pedaços e colocada dentro de uma panela com água quente. A cobra de veado, tradicionalmente usada, tem os ossos retirados e juntamente com os temperos e a farinha dão origem à tradicional farofa de cobra dos Tapebas.

 

Em aniversários, o aluá, bebida feita com o catolé (coco babão), era a bebida que Josimar  cresceu vendo a madrinha fazer. O aluá, diferente do mocororó, não vai ao sol no processo de fermentação,  fica na sombra por no máximo três dias, para ser adoçado com açúcar ou mel, se preferir. Da infância, o professor de matemática recorda do uruá, crustáceo colhido nos açudes em que se separava apenas uma parte para comer. O crustáceo de água doce, quando cozido, estava livre de impurezas, e ao ser frito poderia ser servido com feijão verde e a farofa de cobra.

Os pratos e ingredientes servidos na mesa do povo Tapeba se mesclam aos consumidos diariamente nas casas pelo Brasil. As comidas carregam memórias e servem como pontes para antigas histórias e costumes. Tradições preservadas na mesa, no fogão à lenha, no peixe, no caranguejo, no milho, no coco, no caju ou na mandioca. Ingredientes antigos que se misturam aos novos na receita que mescla  presente, passado e o futuro de novos sabores e novas conquistas.

A mandioca é o ingrediente principal da tapioca e do beiju preparado por Dona Nonata Ferreira que aprendeu a receita com o pai aos 12 anos. Hoje, aos 55, relembra a época do plantio em janeiro e a colheita que tardava a chegar, apenas em dezembro. A combinação da goma e do coco é misturada na bacia pelas mãos ágeis da senhora, habéis em juntar os ingredientes. A tábua de pedra leva o beiju ao fogo, conservando as origens de quando ainda não se tinha a frigideira e o fogão à gás. Dez minutos de um lado e ela vira a massa, com uma arte que ninguém entende e certamente não aprendeu nos cursos de gastronomia. Mais dez minutos e ela está pronta.

Plantar e esperar a época de colher é um processo que exige paciência assim como as professoras Priscila Rodrigues e Simone Ferreira explicam o preparo do carimã, ingrediente basilar de muitas receitas. A mandioca é colocada de molho de três a quatro dias, se retira a casca e o miolo, que é colocado num saco de pano onde se apura a massa. Quando estiver pronta, ela pode ser usada para fazer mingau, bolos e a patchã (farofa da massa de mandioca).

O croquete de mandioca leva claras de ovos na massa e tem como recheio o que a pessoa escolher antes de ser frito. As professoras Elenilda Lima e Selma Teixeira preparam o tacacá (caldo de mandioca), incrementado com  bacon e linguiça defumada para “dar o gosto”. Elas preparam as comidas na escola e levam para representar a comunidade Aba Tapeba na Feira Cultural das escolas indígenas que ocorre anualmente no Terreiro do Pau Branco, na Lagoa dos Tapebas. Os problemas com a insegurança e os frequentes assaltos mudaram a rotina do preparo das comidas, assim como a dificuldade em obter o principal ingrediente da farofa de cobra.

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Jogos Indígenas

Danças, encenações, palestras, desfiles , exposições artísticas e, em todas as outras ações, havia sempre a presença da afirmação da tradição indígena Tapeba. A Festa da Carnaúba, que acontece todos os anos na comunidade do Terreiro Sagrado, em Caucaia, é a exposição viva dos costumes da tribo do distrito de Capuan.

Além das ações citadas acima, Os Jogos Indígenas também estavam incluídos na programação do evento. Presente na semana comemorativa desde a sua primeira edição, a programação esportiva é voltada, em sua maior parte, para as crianças da tribo, trabalhando especificamente naquele público, através dos jogos, a importância da cultura do povo Tapeba.

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Esporte

A relação com a Jurema é umbilical e mística. A árvore, entendem eles, é de propriedade de deuses invisíveis. “A terra tem dono, o rio tem dono, as árvores têm dono. Não foi o homem que inventou a natureza. Por isso, ela tem de ser respeitada. Sem ela a gente nem existiria. É a Jurema que nos inspira, que nos cura, que nos alimenta e nos protege da ganância dos homens brancos que nos perseguem ao longo da sua história", diz a pajé Raimunda.

 

Lugares onde a Jurema pode ser encontrada são sagrados. A força da árvore é tanta que ela se destaca das demais, daí sua natureza mística. As juremas são um elo entre o mundo dos vivos e dos Encantados, simbolizando, ao mesmo tempo, morte e renascimento de um mestre falecido. O mestre planta e consagra a árvore a um mestre invisível, com o qual trabalha. Além disso, de suas raízes ou cascas é produzida a bebida consumida durante as sessões espirituais e também nas festas.

JUREMA

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