
Em outubro foi criada a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Foram meses de reivindicações dos grupos indígenas até a aprovação do novo segmento direcionado aos cuidados de seu povo. Hoje as DSEIs são responsabilidade da Sesai. Além dos distritos há postos de saúde, com Pólos base e as Casas de Saúde Indígena.
Em meio a recorrentes manifestações dos povos indígenas, o subsistema percorre um caminho desajeitado. Até hoje, as condições precárias geram insatisfação e desejo por mudança.
O resultado da carência é um atendimento de pouca qualidade, agravos à saúde dos pacientes e superlotação das Casas de Saúde.
2010
Por todo o país havia surtos de varíola, gripe, tuberculose, pneumonia, coqueluche, sarampo. Aldeias inteiras foram destruídas. Os nativos da etnia Urubu Kaapor, do Maranhão, foram dizimados por doenças como sarampo e coqueluche assim como os Pakaa Nova, de Rondônia. Como acompanhamento, havia a desnutrição e a dificuldade na produção de alimentos.
O início dessa trajetória remonta ao início do século XX, com o decreto nº 8.072. Seu objetivo era “proteger e atender a todos os índios em território nacional”. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI), vinculado ao Ministério da Agricultura, foi a primeira organização oficialmente responsável pela saúde dos povos nativos.
1910
Unidades Volantes em trabalho com o médico-sanitarista Noel Nutels, com populações indígenas e rurais, realizaram vacinações em massa para prevenção de doenças. Assim foram contidas a tuberculose que atacou os indígenas Karajá da Ilha do Bananal de Goiás e o surto de sarampo que afligiu as comunidades do Alto Xingu.
1950
Importante marco para a Reforma, foi realizada a 8ª Conferência Nacional de Saúde, reunindo mais de 4 mil pessoas. Aberta para a sociedade, a conferência reuniu acadêmicos, profissionais da área, movimentos populares, sindicatos e usuários dos serviços.
Na mesma ocasião aconteceu a 1ª Conferência Nacional de Saúde do Índio. Questionando a atuação da FUNAI e a dificuldade na resolução das atividades nas áreas de saúde, meio ambiente, educação e auto sustentação, organizações indígenas e indigenistas não-governamentais queriam o descolamento desses setores para ministérios específicos.
1986
Mergulhado em acusações de corrupção e genocídio e incapaz de melhorar ou estabilizar as condições sanitárias nas comunidades indígenas, o Serviço de Proteção ao Índio foi extinto.
A atuação do Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA) se destacou após a extinção do SPI. Fundada por Nutels junto ao Correio Aéreo Nacional (CAN), esse modelo de assistência aérea atendia em localidades indígenas de difícil acesso.
Criada por meio da Lei nº 5.371 e vinculada ao Ministério da Justiça, nasceu A FUNAI. Organizada de maneira a possuir um setor específico, possuía uma assistência baseada no modelo da SUSA, denominada “Equipes Volantes de Saúde” (EVS). Em complemento às EVS, funcionavam os Postos Indígenas (PIN), cujo dever era garantir rapidez nas ações emergenciais e efetividade dos tratamentos prolongados.
1967
A grande desigualdade social, saneamento básico em condições precárias e condições de vida insalubres eram a realidade brasileira da década. Somado a essa situação, havia má aplicação dos recursos financeiros, aumento desordenado de custos, assistência baseada no atendimento em hospitais e o privilégio do setor privado. Nessa década, a atuação da FUNAI na saúde indígena ainda estava em pleno funcionamento.
1970
Foi no contexto de luta contra a ditadura que a estrutura de saúde da FUNAI começou a ruir. Em meio a uma crise financeira, as EVS não eram devidamente custeadas, faltava pessoal e recursos para deslocamento, a infra-estrutura era carente, não havia mais investimentos. Em contrapartida, a Reforma Sanitária eclodia no país, a qual resultaria na criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
1980
Para garantir aos povos nativos melhor acesso ao atendimento de saúde, foi criada a lei Arouca, nº 9.836, de autoria do médico sanitarista e doutor em saúde pública Sérgio Arouca. Na nova fase, eles deixariam de ser tutelados do Estado, passando a controlar e planejar em conjunto os serviços prestados ao seu povo.
Foram criados os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Os 34 DSEIs foram divididos por áreas territoriais, tendo como base a ocupação geográfica das comunidades. Cabia aos distritos sanitários oferecer ações de prevenção de doenças, cuidados direcionados a grupos específicos e controle social, monitoramento das condições de nutrição e do ambiente.
1999
Dali em diante a FUNAI se tornaria responsável apenas pela demarcação e controle territorial das áreas reservadas à esses grupos. O segmento seria responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), órgão do Ministério da Saúde.
Foi a “Lei Orgânica da Saúde”, nº 8.080, que definiu a organização e funcionamento do SUS. Sua proposta de ação era ofertar um serviço de qualidade para os diversos grupos populacionais do país: daqueles em situação de pobreza até os moradores de regiões de difícil acesso. Esse último era o caso de grande parte das comunidades indígenas. Entretanto, a atuação do sistema privilegiava as áreas urbanas, dificultando o atendimento nas áreas rurais e interioranas.
1990

02
Ciência e magia: a ponte para a saúde
Estratégia Saúde da Família e medicina popular trabalham em conjunto no enfrentamento das doenças dermatológicas - maior causa de incapacitação dos indígenas no planeta
Enquanto a pequena Andressa Maria, de quatro anos, dorme na cama de casal em um dos três cômodos da casa; a mãe, Luana Pereira, explica à equipe do Estratégia Saúde da Família (ESF) como faz para preparar o mingau da filha: "junto o leite, a farinha da mandioca, ponho açúcar, mexo e deixo no fogo por uns cinco minutinhos. É fácil! Aprendi com a minha mãe".
A visita de rotina da equipe multiprofissional de saúde ocorre nas sextas-feiras, pela manhã, na Comunidade da Ponte, pertencente aos Tapeba, às margens do Rio Ceará, na BR-222, em Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).
A pequena Andressa está doente, com erisipela, um tipo de infecção da pele provocada por bactérias. Luana está com medo, pois a mãe, Dona Jaci, faleceu em junho de 2016, aos 63 anos, vítima da doença, que se tornou multirresistente após abandonar o tratamento diversas vezes.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, as doenças de pele representam hoje a maior causa de incapacitação dos indígenas no planeta. Além da erisipela, o furúnculo, a micose e a escabiose são constantes na Comunidade da Ponte.
De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), no Ceará, 13,7% dos índios têm algum problema dermatológico, com 94,3% de cura. No município de Caucaia, são cerca de 89,2 casos por 1 mil habitantes e uma taxa de cura de 91,9%, taxa de incidência alta mas controlada graças a eficácia do tratamento.
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SAÚDE
Espiral 2017.2
Uma produção dos Laboratórios de Jornalismo Multimídia e de Telejornalismo do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará
Textos:
01. Débora Nogueira
02. Ideídes Guedes
Infografia e ilustração:
Débora Nogueira
Fotografia:
Jefferson Cândido


Luana, que estava preparando o mingau da filha quando a equipe de saúde chegou, está desempregada. Sem nenhum benefício social, a única renda vem da pesca de caranguejo feita por seu companheiro, João Maria Pereira, de 31 anos. A mulher de 22 anos, com aspecto de mais idade, conta com a ajuda dos vizinhos e dos profissionais do Centro de Saúde Vitor Tapeba para tratar da doença de Andressa. "Toda a semana vem agente de saúde, um doutor, ver como minha filha está e dar medicação, porque ela não pode parar o tratamento", explica.
O Estratégia Saúde da Família é uma realidade na Comunidade da Ponte, onde a cobertura, segundo assegura o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSus), chega a 100 % graças à presença de atenção primária nas aldeias do Ceará. Uma conquista depois de décadas de luta.
A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas integra a Política Nacional de Saúde, com o intuito de pôr em prática as determinações da Lei Orgânica de Saúde (Los), que reconhece aos indígenas especificidades étnicas e culturais e direitos territoriais.
A proposta foi regulamentada pelo Decreto n.º 3.156, de 27 de agosto de 1999, onde está incluída a transferência de recursos humanos e outros bens destinados às atividades de assistência à saúde.
Hoje, a comunidade Tapeba está dividida em 18 aldeias, com uma equipe a cada duas áreas. Ela é composta por um médico, um enfermeiro, um agente comunitário (morador do lugar), um dentista, um psicólogo e um assistente social. Esse grupo vai de casa em casa, de porta em porta, todas as sexta-feiras, acompanhar os pacientes nas 256 famílias da comunidade.
A enfermeira Andreia Ribeiro explica o trabalho feito por esses profissionais. "A gente faz um cronograma para o acompanhamento da saúde da mulher, tuberculose, hanseníase, doenças parasitárias, diabetes, saúde da criança e do idoso. Queríamos fazer isso todos os dias, mas como o número de profissionais é restrito, fica difícil", conta.
ATENÇÃO À SAÚDE

Falar de doenças dermatológicas é também falar do significado da pele para os indígenas. O corpo, particularmente, revela a que grupo cada um pertence pelos signos, pinturas, diz ainda o status social ou até mesmo o estado de espírito. Assim, a memória construída acerca do corpo revela a construção durante todo o ciclo do índio na Terra.
Entre o povo Tapeba, a preocupação com o corpo é especial, pois ele é cultuado desde a infância. A pele que, por sua vez, é a extensão e proteção do corpo, funciona como a porta de entrada dos remédios. No tratamento das doenças, ela possui papel fundamental, seja para absorver propriedades curativas, mas também para a saída de substâncias ruins que o corpo guarda.
A erisipela é a celulite mais incidente no Brasil e uma das doenças comuns entre os indígenas que vivem na Comunidade da Ponte, principalmente, devido à poluição do Rio Ceará, utilizado por muitos para a higiene e o consumo. Incessantemente, junto com a água da chuva, dejetos provenientes de ligações de esgoto clandestinas, que deveriam cair na Estação de Tratamento da Leste Oeste, correm no rio.
Segundo dados do “Observando os Rios 2017”, publicado pela Fundação SOS Mata Atlântica, que monitora a qualidade das bacias hidrográficas, o nível do Rio Ceará é ruim. Na pesquisa, a entidade examinou itens como temperatura da água, turbidez, espuma, lixo flutuante, odor, material sedimentável e coliformes fecais. "A gente pescava todo tipo de peixe, caranguejo. Era a nossa fonte de renda. Fico triste em vê-lo assim", diz a pajé Raimunda Tapeba.
CORPO, PELE E DOENÇAS

Entre os índios, nas mais diversas aldeias, o tratamento e a cura de doenças também são feitos pelos pajés, por meio de práticas mágicas. Medicina tradicional e popular trabalham no tratamento das doenças. "Convidamos Dona Raimunda para que viesse todas as semanas falar sobre medicina popular indígena. É uma forma de promover o diálogo para o fortalecimento dos saberes indígenas da medicina tradicional”, detalhou a enfermeira.
Segundo a coordenadora do DSEI Ceará, Socorro Litaiff, a ação beneficia as comunidades indígenas, apontando caminhos para o diálogo com a medicina tradicional. "Essa interação entre os profissionais de saúde com os líderes indígenas serve para aprimorar e fornecer subsídios para o exercício da medicina tradicional em suas comunidades, valorizando também o trabalho das parteiras e o fomento do fortalecimento das práticas tradicionais indígenas no cuidado à gestante e ao bebê", ressalta.
Essas ações de interdisciplinaridade fazem parte da Política Nacional de Humanização (PNH), criada em 2003, que visa a aproximação e a inclusão dos indígenas no Sus. O uso de ervas, rezas e até a convocação de curadores tradicionais como pajés, rezadores e raizeiros é utilizado de forma concomitante ao tratamento médico. "É comum o indígena vir aqui trazendo consigo raízes para serem utilizadas na forma de chá, banho e massagem", relata Verônica Tapeba, agente comunitária de saúde.
INTERDISCIPLINARIDADE

Dificuldades no acesso a remédios
Em 2009, o Estratégia Saúde da Família chegava a 85,5% das famílias indígenas e hoje chega a 98,1%. A meta é chegar a 100% até o final de 2017. Como a taxa de incidência de doenças dermatológicas entre os indígenas ainda é alta, 30 mil casos por ano, o tratamento é essencial para o controle. Pensando nisso, o Sus disponibiliza nas farmácias, distribuição gratuita de antibióticos e outros remédios para a população indígena.
No entanto, para o trabalhador autônomo, Marcos Lima, de 31 anos, mesmo que a distribuição de remédio seja gratuita, a localização da farmácia dificulta o acesso. “A farmácia fica no Centro de Caucaia. A gente, muitas vezes, não tem dinheiro para comer imagina ter para pagar ônibus para pegar a medicação. A gente escolhe: ou come ou continua doente. Eu prefiro comer”, desabafa.
Além disso, os indígenas dizem que até os remédios da medicina natural são caros por causa da indústria. Marcos que está em tratamento para curar escabiose, nome técnico que se dá à sarna, uma doença de pele que produz pápulas avermelhadas na pele e muita coceira; acrescenta que nem todas as plantas e ervas medicinais existem na comunidade e, com isso, é preciso ir ao mercado comprar. “Antes tínhamos tudo. Conheço mais de 200 plantas que tratam doença. Aprendi com minha mãe. Mas não chove. E se não chove, não tem erva. E se não tem erva, não tem remédio, lambedor. Falta aguacate, marapuana, saracura que eu poderia utilizar para me curar”.

Saúde indígena: uma trajetória de descaso e lutas
Os donos e donas originais da terra, que eram cinco milhões no século XVI, passaram a 896,9 mil até 2010. Entre os séculos de perdas e lutas, a saúde indígena passou de mãos em mãos, evidenciando a falta de estrutura das instituições direcionadas às políticas indigenistas no Brasil