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Das árvores aos tijolos: mudanças no ensino indígena

A luta pelo direito a um pedaço de chão para chamar de seu é a sina de milhares de brasileiros que vêm reivindicando o direito à terra há séculos. Nos primórdios, os que aqui estavam defendiam suas terras do estrangeiro, o português, o holandês e outros europeus que esse solo desejaram. Séculos se passaram e o inimigo agora é outro. É o Estado, o mercado imobiliário, o resort, a indústria, enfim, o capital, cuja ganância quer tomar à força um lugar que ainda está inexplorado. 

“Viemos, toda a escola, para dentro da área onde ela está situada hoje. Nesse momento, a gente reviveu os anos 90, onde cada árvore que tem aqui era uma sala de aula”. Esse relato de Maria Yolanda de Oliveira Ambrósio, diretora e professora da Escola do Trilho, da comunidade Tapeba, revela. Lá, a iniciativa para que o ensino começasse a ser pensado com maior profundidade aconteceu a partir de meados da década de 90, com o auxílio da professora Elizabete Cruz da Silva, conhecida como Bete Tapeba. Foi Bete quem fundou a instituição onde Yolanda trabalha hoje, uma das primeiras dos indígenas da etnia.

Ajudar na fundação da primeira escola pareceu uma vontade de dar às crianças da comunidade algo que faltou à própria Bete: uma educação voltada à cultura, sem muitas dificuldades. Ela afirmou que cobra os alunos da Escola do Trilho quanto a isso: “eu digo para as crianças hoje que eles têm tudo. Eu, mesmo com todas as dificuldades, consegui terminar a escola”.

Bete relembrou, com tristeza, um dos principais motivos pelos quais as pessoas da comunidade tiveram a iniciativa de unir esforços em prol da educação indígena: “Teve um dia que aconteceu um sobrinho meu foi discriminado na escola em que ele estudava. Ele ficou com trauma, não queria mais ir para a aula, porque a diretora tinha dito que ia segurar ele pra cortar o cabelo dele. Isso doeu muito em nós. Essa era a única escolinha que existia para as nossas crianças. Decidimos, então, criar uma escola para o jeito que nós somos. Foi aí que veio a escola diferenciada”.

A partir daí, eles tiveram que começar tudo do zero. “Um amigo meu, dono de gráfica, doava cadernos para nossos alunos. Começamos a ensinar debaixo das mangueiras, sentados em um tijolo ou em uma carnaúba, e éramos nós, as lideranças, que ensinávamos”, explicou Bete.


 

HISTÓRICO

“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Isso é o que determina o artigo 205, da Constituição Federal de 1988. Essa determinação deve ser aplicada, sem distinções, a brancos, pretos, pardos ou indígenas. Ainda segundo a Carta Magna, no artigo 206, parágrafo I, “O ensino será ministrado com base no princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. O direito a uma educação diferenciada está garantido também pelo Plano Nacional de Educação e pelo Estatuto do Índio.

As populações indígenas possuem pleno direito à educação multidisciplinar - que reúna matérias de ensino regular e outras relacionadas à cultura de cada etnia -, comunitária e específica, conforme determina a Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio da legislação que envolve a Educação Escolar Indígena. De acordo com cartilha divulgada pelo Ministério da Educação, o ensino indígena “aborda assuntos relacionados à prática pedagógica para o desenvolvimento da capacidade de aprender do aluno indígena, considerando as especificidades, interesses e cultura indígenas”. E não existe somente a educação convencional escolar; existe também a do tipo comunitária, que pode ser definida como um tipo de educação não-escolar que tem o objetivo de universalizar o ensino indígena, além de socializar o conhecimento adquirido em assuntos aprendidos em escolas regulares, como língua portuguesa e matemática.

O atual prédio onde a escola está funcionando foi conquistado apenas em 2010. “Quando o prédio chegou, a gente já tinha uma história muito grande, iniciada especialmente com a Bete, que juntou uma turma de vários níveis de escolaridade”, relembrou. Segundo Yolanda, a comunidade percebeu que era necessário um ensino voltado principalmente para a história e a cultura da população indígena. Nesse contexto, muitos professores passaram pela instituição até ela estar nos moldes de hoje em dia.

A diretora considera, porém, que foi no ano de 2001 que tudo começou a dar certo na escola: “nessa época, a Secretaria de Educação começou a olhar para a comunidade e a apoiar. Eles fizeram contrato para os professores e a voltar as atenções para a questão do espaço ocupado pelos alunos”. Ela relatou também que foram alugados prédios para que a escola pudesse se consolidar, porém, a comunidade acabou perdendo o espaço: “eles (Seduc) não pagavam o aluguel, e as pessoas responsáveis, que eram não-índios, disseram que não tinham condições da escola ficar sem pagar”.

Foi então que os próprios professores se reuniram e resolveram alugar outro prédio, só que tirando dinheiro do próprio bolso, em 2004. Yolanda relembrou que, nesse momento, a intenção dos professores indígenas era de dar início às retomadas das terras que eram dos antepassados.

“A gente construiu todas as salas que existem lá na escola, tudo com trabalho voluntário. Foi a comunidade que construiu.”

Atualmente, a Escola do Trilho conta com cerca de 350 alunos (inclusive não-índios), da Educação Infantil (com crianças a partir dos quatro anos) ao segundo ano do Ensino Médio, com horário integral (manhã-tarde). Além disso, a instituição possui 19 professores para ensinar as mais diversas matérias, tanto da base nacional curricular, quanto da própria cultura indígena.

Porém, como outros aspectos debatidos com frequência pelo descaso com a população, em maior ou menor grau, a educação para os índios enfrenta problemas, desde a base até o ensino superior, onde as possibilidades de crescimento se afunilam sempre mais, devido ao aumento da concorrência no mercado. Por exemplo, para ser professor, um dos empregos mais comuns da comunidade Tapeba, só que fora da aldeia, é necessário que o indígena possua uma formação curricular extra. Isso é algo que, muitas vezes, os profissionais não têm, e eles acabam por continuar dentro da comunidade, trabalhando junto ao seu povo.

A professora Graciana Trajano, que ministra aulas na escola há 16 anos, ressalta a importância de mostrar em sala os conteúdos relacionados à sociedade e à cultura da comunidade: “procuramos trazer os temas da grade curricular tradicional para a nossa realidade, buscando debates importantes para a nossa comunidade, como a questão das doenças e do desenvolvimento social, por exemplo, além de falar sobre o artesanato e como o povo se organiza culturalmente”.  Com isso, o professor Antônio D’Paula notou um saldo positivo no ensino indígena, com dois aspectos fundamentais: o aumento da afirmação, do orgulho de ser índio, e um número cada vez maior de alunos nas escolas.

Apesar disso, os professores entendem que um dos problemas encontrados pelo caminho é com relação a estrutura. Para Antônio, devido ao aumento do número de estudantes, o prédio que havia sido construído anteriormente e estava sem uso está precisando ser utilizado, pois a atual estrutura não tem condições de comportar todos: “o nosso prédio é muito bonito, mas só tem quatro salas de aula na realidade. A gente teve que adaptar o restante. Já estamos pensando em uma possível ampliação dela, com a ajuda da Seduc”.

Com relação à educação indígena voltada às universidades e faculdades, são percebidas algumas tentativas de melhorar o quadro da educação indígena, pelo menos no Ceará, que tem trazido um ar mais animador. A Universidade Federal do Ceará (UFC) criou um curso, em janeiro de 2010, com o objetivo de “formar índios das etnias Pitaguary, Tapeba, Kanindé, Jenipapo-Kanindé e Anacé para serem professores com grau superior de Licenciado e atuarem como docentes em escolas indígenas de Ensino Fundamental e Médio”, segundo o site da instituição. Esse curso é o de Licenciatura Intercultural Indígena (LII - PITAKAJÁ), composto pelas etnias já mencionadas. Também existe a Licenciatura Intercultural Indígena KUABA, que abrange todas as etnias do Ceará. O LII - KUABA é válido para qualquer indígena do Estado que desejem participar. Atualmente, o LII-PITAKAJÁ conta com 50 estudantes e o KUABA com 135 alunos, dos quais cerca de 90 cursavam licenciatura na Universidade Estadual do Ceará (UECE) e foram transferidos, sob a justificativa de “problema técnico”.

O coordenador do LII - PITAKAJÁ, ofertado pela Universidade Federal do Ceará, professor Carlos Kleber Saraiva de Sousa, explica como é a dinâmica do curso: “O curso dura quatro anos, e o PITAKAJÁ tem aula uma vez por mês durante uma semana intensiva. Cada disciplina tem cerca de 50 horas. Eles têm aula de manhã e de tarde e duas noites, sendo que em uma das noites, habitualmente, nós temos uma plenária, onde os participantes debatem várias  questões que dizem respeito ao curso, como avaliação dos professores e análise dos conteúdos pedagógicos e acadêmicos”.

Segundo Kleber, praticamente todos os aspectos que envolvem o LII - PITAKAJÁ são decididos pelos próprios alunos antes do início do semestre letivo. “Eles só não decidem aquilo que está fora da nossa ‘ossada’ decidir: alguma regra da universidade ou do MEC. Mas, por exemplo, com disciplinas: a gente se reúne, antes do semestre começar, e vê quais disciplinas eles querem ver naquele semestre, eles também levantam nomes de professores que possam ministrar as disciplinas”.

 

O processo de seleção para a entrada no curso também é realizado pelos próprios índios e pode mudar de acordo com a vontade da turma. Na primeira, que se formou em agosto de 2016, o método de entrada respondia a critérios de cada uma das etnias. Já na que teve início no segundo semestre de 2017, a seleção aconteceu por meio de uma prova de redação. Para além disso, os outros critérios para a entrada dos alunos no curso são de ter concluído o ensino médio, ser índio de uma das cinco etnias PITAKAJÁ (Pitaguary, Tapeba, Kanindé, Jenipapo-Kanindé ou Anacé) e comprovar ser morar em uma das aldeias, por meio de declaração da associação indígena local.

Durante as aulas, os estudantes aprendem não só matérias relacionadas à cultura de cada um. Eles são preparados em seis núcleos de formação diferentes: antropologia e culturas indígenas, sociologia e política, educação escolar indígena, história, português e matemática. “Quando eles se formam, saem habilitados para ministrar disciplinas que estão dentro do currículo deles ou do núcleo de formação. Prioritariamente, a atenção é voltada às escolas indígenas. Mas se uma prefeitura local abrir um edital que permita que um ex-aluno de curso de licenciatura indígena, mas com habilitação em matemática, por exemplo, faça o concurso, eles podem fazer, sem problemas. Isso vai depender muito dos editais, não do diploma”, explica Kleber.

PERSPECTIVAS

No que diz respeito à educação escolar, os professores foram unânimes: um dos maiores desafios para o pleno desenvolvimento do ensino indígena é a afirmação da cultura e dos costumes da comunidade. Graciana Trajano explica que um dos principais objetivos da Educação Indígena é a manutenção da cultura como forma de aceitação. “Hoje em dia, vemos muito os jovens tendo acesso às tecnologias. Se quer ter acesso aos meios, tem que ter contato também com a cultura tradicional, com o costume de dançar o Toré, de se trajar em momentos de festas e de conhecer a história do próprio povo”, afirma.

Para o futuro da educação indígena superior, professores e alunos convergem a uma opinião: ainda há muito o que ser feito e discutido entre os povos e as autoridades responsáveis. O professor do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará, Babi Fonteles, ressaltou: “aqui no Ceará, embora tenhamos sido os protagonistas em ensino superior indígena, enquanto universidade federal, no nordeste do Brasil, ainda temos um caminho muito longo a ser percorrido no que diz respeito a outros âmbitos de formação, para além da contratação de professores para os cursos indígenas”.

O ex-aluno do curso PITAKAJÁ da UFC, João Paulo, da comunidade Pitaguari, afirmou que a educação é um dos pilares que sustenta a luta dentro das aldeias: “o surgimento das escolas e, consequentemente, a necessidade ter profissionais indígenas capacitados para atuar nas escolas indígenas, veio também de uma cobrança do Governo do Estado para a preparação desses professores em áreas específicas”. Por isso, para João, é de fundamental importância que essas cobranças continuem, visando um crescimento e aprimoramento desse setor, tanto no ensino básico como no superior: “que a gente possa continuar ocupando esses espaços com vontade e capacidade. A luta é contínua; depois desse processo, virão outros, para que nós possamos fortalecer nossas condições e nossos ideais”.

Histórico
Ensino Superior
Escola do Trilho
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EDUCAÇÃO

Espiral 2017.2

Uma produção dos Laboratórios de Jornalismo Multimídia e de Telejornalismo do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará

Textos:

1. Faruk Segundo

2. Felipe Klisma

3. Karoline Tavares

Podcast:

Faruk Segundo (produção e edição de áudio)

Felipe Klisma (produção e apresentação)

Karoline Tavares (produção)

Fotografia:

Gabrielle Zaranza

Ilustração:

Faruk Segundo

02

O podcast a seguir aborda as questões em torno da inserção indígena no ensino superior.

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal validou a adoção de políticas de reservas de vagas para garantir o acesso de índios ao ensino superior em todo o Brasil. A partir desse ponto, as universidades brasileiras apresentam diversidades nessas políticas de acesso, tentando garantir com que o índio pudesse conquistar o seu espaço.

Ainda assim, mesmo essas razões representando avanços, é preciso refletir sobre algumas questões: o acesso dos indígenas ao ensino superior está resolvido? foi alcançado o patamar desejado? Após o acesso, há uma preocupação em criar ações que visem a permanência do índio no ensino superior?

Essas e outras questões serão respondidas num debate, trazendo a visão do especialista Babi Fonteles, professor da Universidade Federal do Ceará, e de João Paulo, Cacique Pitaguary formado pelo curso de licenciatura indígena da UFC.

Entrada e Permanência

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Resistência também é educação

A Escola Indígena Tapeba do Trilho carrega uma história que vai além dos muros e vive acesa no coração daqueles que lutaram pelo direito à educação.

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