top of page
Organização
Trabalho
  • Grey Facebook Icon
  • Grey YouTube Icon
  • Grey Instagram Icon

© 2017 por Demarcados. Proudly created with Wix.com

SOCIEDADE

Espiral 2017.2

Uma produção dos Laboratórios de Jornalismo Multimídia e de Telejornalismo do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará

Textos:

01. Isabela Santana

02. Karoline Tavares

03. Jefferson Cândido

Produção e edição de vídeo:

Jefferson Cândido

Fotografia:

Isabela Santana

Jefferson Cândido

Presença LGBT na comunidade dos Tapebas

A equipe do Espiral foi até a Festa da Carnaúba em Caucaia, mais especificamente no Terreiro Sagrado dos Pau Branco - Lagoa dos Tapeba, em busca do universo LGBT na comunidade indígena Tapeba

 

Entre crianças, música, comidas e a energia que só um festival pode proporcionar, encontramos personagens que inspiraram e ensinaram lições de vida, força e empoderamento numa calorosa quinta-feira de outubro de 2017.

As letras GLS e T tomaram forma em nossa narrativa. Fabrício e Renato representam a letra G (garra), Jéssica representa a letra L (liberdade), Cacique Kauã e João Kennedy representam a letra S (solidariedade) e Perpétua representa a letra T (transcender). É preciso deixar os rótulos de lado, fazendo isso, nossa mente fica mais aberta, mais ativa e absorvemos com mais clareza aquilo que o nosso interlocutor quer passar. Devido a isso, escolhemos palavras que representam a essência de cada um dos personagens dessa narrativa.

O ser gay por si só, já traz uma carga histórica de luta e de conquistas por aquilo que lhe é de direito. Pensando nisso, como será conviver em uma comunidade indígena sendo gay? Quais são as suas batalhas diárias? Sofre-se preconceito por ser gay e índio dentro da comunidade e fora dela? Essas e outras questões foram tratadas pelos estudantes Fabrício Gomes e Renato Lemos, 19 e 21 anos, ambos índios Tapebas. Conheça a visão de quem vive essa realidade na própria comunidade.

Renato Lemos, 21 anos  e Fabrício Gomes, 19 anos – Comunidade Tapeba

Renato Lemos, 21 anos e Fabrício Gomes, 19 anos – Comunidade Tapeba

Renato Lemos, 21 anos e Fabrício Gomes, 19 anos – Comunidade Tapeba

GARRA

Você já imaginou como seria a vida de uma lésbica que quer ter filho com a sua companheira, mas de forma independente? O fato não é uma utopia, pelo contrário, ele é real e é a história de vida da indígena Jéssica Silva, 20 anos, da comunidade Tapeba.

Jéssica Silva - Índia Tapeba
00:00 / 00:00
Jéssica Silva, 20 anos.

LIBERDADE

João Kennedy, 25 anos, é Coordenador da Articulação dos Jovens Indígenas Tapeba (AJIT). Por estar diretamente ligado aos jovens da comunidade, João possui experiência e contato direto com os jovens LGBTs da comunidade indígena a qual representa. Levando isso em consideração, Kennedy compartilha em entrevista sua visão de liderança em relação ao assunto.

O apoio da comunidade é essencial aos LGBTs.

João Kennedy - Coordenador da AJIT
00:00 / 00:00
João Kennedy

Coordenador AJIT

Nós apoiamos qualquer ser humano, independente de gênero, sexo ou orientação sexual.

Pitaguary é a autodenominação do povo indígena que vive ao pé da serra entre os municípios cearenses de Maracanaú, Pacatuba e Maranguape. Distante aproximadamente 26 Km de Fortaleza, a Terra Indígena Pitaguary está situada na região metropolitana da capital cearense. Como será o tratamento dado aos LGBTs em uma comunidade distinta?  Cacique Kauã do penacho branco, 32 anos, é da etnia Pitaguary e fala sobre o assunto de forma clara e aberta.

Cacique Kauã

"Há exatos 12 anos recebi o nome de Kauã Pitaguary do penacho branco, ao tempo em que recebi uma grande missão de vê antecipadamente o que irá acontecer com meu povo."

03

É o que relata Estevão Fernandes, antropólogo da Universidade Federal de Rondônia em sua pesquisa de nome “Índios gays no Brasil: a história não contada sobre a colonização de sexualidades indígenas”.

Homossexualidade no Período Colonial

Homossexualidade no Período Colonial

Fonte: Artigo Homossexualidade indígena no Brasil: Um roteiro histórico-bibliográfico

Estevão Rafael Fernandes - Dept. de C. Sociais/ Univ. Fed. de Rondônia

Homossexualidade no Período Colonial

Você sabia que as relações homoafetivas entre índios eram comuns antes da colonização?

01

A luta que se organiza, a luta organizada e a luta para se organizar

Desafios da convivência Tapeba em uma sociedade moderna

Aos 31 anos de idade, Kylvia Tapeba é esposa, mãe, presidente da Associação das Comunidades dos Índios Tapeba de Caucaia (Acita), coordenadora da Articulação das Mulheres Indígenas Tapeba (Amita), vice-coordenadora da Articulação das Mulheres Indígenas no Ceará (Amice) e personagem extremamente ativa na comunidade da Lagoa e na etnia como um todo.

Encontrei Kylvia sentada em uma rede, prestes a saborear uma espiga de milho que, só pelo cheiro, parecia de fato saborosa. A líder ostentava pinturas tradicionais no rosto e uma expressão de serenidade. Sentei-me ao lado dela, desengonçadamente desequilibrando a rede e sua ocupante original, na tentativa de me acomodar.

Acomodar. Acomodados? De que forma os Tapeba se acomodam (ou não) nos espaços que ocupam atualmente? A pergunta dá abertura para que Kylvia elabore uma extensa explicação sobre as maneiras em que a etnia Tapeba se distribui e se organiza em sua região de origem: Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza.

Os Tapeba possuem, no total, 18 comunidades espalhadas geograficamente pelo território do município. Quatorze delas são consideradas por eles mesmos como socialmente organizadas. Isso significa, na prática, que quatro comunidades possuem índios Tapeba, mas não possuem lideranças, ou, se possuem, não interagem com as demais comunidades e associações. É um fenômeno de várias causas, mas algumas são a distância geográfica maior do que os recursos de transporte podem suprir ou a simples falta de engajamento.

Nessas quatro comunidades, o acesso a serviços básicos acontece através do município de Caucaia, da mesma forma que para a população não-indígena. Nas demais 14 comunidades Tapeba socialmente organizadas, serviços como saúde e educação são fornecidos pelo município e/ou pelo Governo do Estado dentro de modalidades especiais, direcionadas às necessidades e exigências da etnia.

Na divisão organizacional dos Tapeba ainda existem setores específicos devidamente representados para assuntos como saúde, educação, esporte, etc. Em cada uma das associações e articulações existe a preocupação para que todas as comunidades tapebas estejam representadas dentro das gestões – tradicionalmente compostas por 12 membros – e suas respectivas agendas políticas.

Cada uma das 14 comunidades Tapebas socialmente organizadas também tem sua liderança política, a qual pode ser composta por um ou dois membros. A escolha é feita democraticamente dentro da própria comunidade, cujos integrantes decidem quem apoiar guiados principalmente pelo instinto de liderança e proatividade que o candidato emana.

“Naquele momento a comunidade em si se reúne e escolhe a liderança, a pessoa que ela quer que a represente. Assim como também, quando há uma liderança que não está atuando de forma coerente, a comunidade se reúne e escolhe outra pessoa para ficar no lugar”, Kylvia detalha. A principal razão para a existência das lideranças é burocrática, para que assinar papéis e representar a comunidade em assuntos oficiais não seja uma constante confusão sobre quem é a pessoa responsável.

É um trabalho de alta responsabilidade e complexo por natureza, com ambas características intensificadas pela necessidade constante dos Tapeba de estarem em posição de luta. Luta por direitos, luta para não perder territórios que já foram reapropriados com muito esforço, luta para se manterem firmes — assim como Kylvia se manteve quando a rede foi desequilibrada. É a determinação para permanecer onde originalmente sempre se esteve fundida com a confiança de quem conhece o “terreno” com a palma da mão.

Na modernidade, liderar uma tribo indígena não significa organizar combates armados com arcos, flechas e lanças, como narram os livros de história. A defesa do território acontece por entre a burocracia que o mundo moderno ergueu. É com documentos, firmeza e determinação que um líder indígena defende seu povo. Mas a tradição da batalha permanece enraizada na cultura, agora redefinida e redirecionada para novas lutas, não necessariamente belicosas (ainda que algumas possam ser).

Para diversas etnias indígenas pelo Brasil, é papel do cacique determinar a ação de cada aldeia com relação à guerra, à caça e à luta em geral. Há mais de 30 anos como o cacique dos Tapeba, o Cacique Alberto já foi um grande pivô na atuação política da etnia. Infelizmente, e possivelmente por conta da idade avançada, sua presença já não é tão forte nos “campos de batalha” atuais.

A regra geral para o cargo do cacique é que a sucessão aconteça hereditariamente, sempre de pai para filho, independente de ser ou não o primogênito. Já circula pelos tapebas a informação sobre qual dos filhos do Cacique Alberto assumirá a posição, mas será necessário aguardar até que o atual cacique se ausente do cargo, por razão de falecimento ou aposentadoria.

A MÃO QUE EMPUNHA A LANÇA

Também presente em grande parte das etnias indígenas brasileiras, a figura do Pajé representa a espiritualidade da comunidade incorporada em uma única pessoa, capaz de elevar espíritos, realizar cerimônias, falar com as divindades e curar das mais diversas doenças, físicas ou espirituais. Nos tapebas, a Pajé Raimunda é, segundo Kylvia, “quem leva a espiritualidade do nosso povo nas costas”.

Pajé Raimunda não é só uma figura espiritual, ela também esteve presente nas principais linhas de frente ao longo da luta Tapeba por demarcação, direitos e justiça. “Ela foi uma das pessoas que começou a luta do povo Tapeba, ela melhor do que ninguém sabe desde o início como se deu todo o processo. É uma mulher guerreira que não abaixa a cabeça, uma pessoa muito imponente”, Kylvia ressalta.

Impossível não notar o embargo em sua voz enquanto conta os grandes feitos e qualidades da Pajé Raimunda. A princípio, interpretei a emoção como reflexo da importância da Pajé para o povo e para Kylvia, mas o significado estava além isso: Kylvia está em processo de preparação para ser a sucessora da grande líder espiritual Tapeba.

Kylvia parece entender o peso de representar a escolha pessoal de Pajé Raimunda. A emoção em sua voz e em seus olhos diz mais que orgulho, grita respeito, temor, preocupação e a sensação de dever a cumprir. “A importância da pajé é que através dela, das orações dela, que até hoje o nosso movimento se mantém em pé. A parte mais importante do nosso movimento é a questão da espiritualidade”, finaliza.

Guerreiras

Sempre na linha de frente, as mulheres tapebas resistem e se empoderam

Ocupar o cargo de coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas Tapebas (Amita) faz de Kylvia a pessoa ideal para falar sobre a condição da mulher nas comunidades Tapebas e os desafios enfrentados por elas como mulheres e indígenas, ou seja, como minorias em diversos aspectos. A princípio, dentro da comunidade, igualdade não é um problema.

“A mulher aqui sempre se mostrou muito forte, a mulher que sustenta a família, a mulher que luta, a mulher que se acorda cedo, cuida de casa mas depois vai pra roça cuidar da agricultura junto com o marido… Hoje em dia, a mulher, aqui nas nossas comunidades, além de tudo isso algumas ainda têm um trabalho extra, ou trabalha na escola como professora ou é agente de saúde”, resgata.

Nas questões de representatividade eles também estão à frente da sociedade não-indígena. Dentro das comunidades, a mulher Tapeba é conhecida por ocupar posições de liderança. Na comunidade da Lagoa, a maior delas, praticamente todos os setores sociais possuem ao menos uma mulher em posição de decisão: Pajé Raimunda, Kylvia, Dona Raimundinha (liderança política da comunidade da Lagoa junto com Weibe Tapeba), e muitas outras.

Nos eventos de reivindicação da etnia, como passeatas e manifestações, as mulheres compõem a maioria. “A gente costuma dizer que as mulheres, tem algumas que tem muito mais coragem que o próprio homem. Sempre mesmo, quando a gente fala assim ‘vamos pra uma manifestação’, a gente observa 70% a 80% de mulheres”, Kylvia estima.

 

 

Infelizmente, a mulher Tapeba não está protegida do mal que nos aflige como gênero: a violência doméstica. Kylvia relata alguns casos. Houve aqueles que foram resolvidos dentro da própria comunidade e aqueles nos quais a polícia foi acionada e realizou-se o procedimento padrão na delegacia da mulher. Houve situações também em que mulheres foram vítimas de depressão, por diversas razões, e uma delas chegou a tirar a própria vida.

Agentes de psicologia do conselho de saúde Tapeba são, por vezes, direcionadas para atender alguma mulher ou família que esteja precisando. É importante saber que existe um apoio, quando necessário. “A gente tenta formar, vamos dizer assim, mulheres guerreiras e empoderadas, porque alguns anos atrás realmente não era dessa forma.” Tapebas ou não, estamos todas nesse processo. Passo a passo chegaremos lá, uma liderança por vez.

“A gente tenta formar, vamos dizer assim, mulheres guerreiras e empoderadas, porque alguns anos atrás realmente não era dessa forma”

Intolerância, Preconceito e Violência! Três palavras bem conhecidas no cotidiano de pessoas trans. Ser um ser humano e ser respeitado como tal não é uma tarefa das mais simples para quem não se identifica com o  sexo biológico. Viver a  identidade é uma luta diária para as trans, principalmente para quem reside no Brasil, um dos países que mais mata trans. Segundo levantamento realizado pela ONG Transgender Europe (pesquisa realizada em novembro de 2016), o Brasil responde por 42% dos 295 casos de assassinatos de pessoas trans registrados em 2015 no mundo. Com 123 mortes, o país fica bem à frente do segundo colocado, o México, onde houve 52 registros. E se mantém na primeira posição do ranking anual que contabiliza mortes dessa população.

O segundo estado da região Nordeste que mais mata LGBTs é Fortaleza. De acordo com o  Grupo de Resistência Asa Branca (Grab), no mais recente levantamento, de setembro de 2017, 43 pessoas foram assassinadas nos últimos três anos no Ceará. Segundo o monitoramento da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil), apenas em 2017, 17 travestis e transexuais foram assassinadas no Ceará. Dessas, 14 foram por armas de fogo, sendo 60 tiros letais, média de 4,28 balas por vítimas; e três por arma branca, 69 perfurações ao todo, média de 23 por pessoa morta. Na intenção de execução sumária, os golpes foram direcionados em 56% à cabeça e 17% às costas.

No Ceará são registrados 2,2 casos de LGBTcídio/ mês, um aumento de 46% em relação a todo ano de 2016, conforme o Grupo Gay da Bahia (GGB). No levantamento preliminar, travestis e transexuais apresentam o perfil mais vulnerável à violência letal, correspondendo a 68%. O estudo ainda aponta que 46% das vítimas tinham idade inferior a 30 anos, abaixo da expectativa de vida cearense, atualmente de 70,3 anos.

Perpétua, 41 anos, esteticista e cabeleireira, é uma exceção aos números citados, porém já vivenciou essa realidade. Moradora da Comunidade dos Tapebas Capoeira, é indígena e transexual, e muito bem resolvida com sua identidade de gênero hoje, mas nem sempre foi assim. Nos seus primeiros anos como mulher trans sentiu na pele o peso por não se identificar com seu sexo biológico, vindo a enfrentar diversas situações de preconceito. Sem oportunidades de trabalho, lhe restou as ruas, o que a  levou ao consumo de drogas, um retrato bem comum na comunidade trans, mas que não deveria ser.

Salvem nossas Perpétuas!

Uma crônica de resistência.

TRANSCENDER

Naturalizar preconceitos e manter uma cultura de ódio contra quem não se enquadra no que é dito como “normal” é cultivar a intolerância contra tudo que desconhecemos, e nós nunca seremos conhecedores de tudo, sobretudo da natureza humana, que tem em sua essência um estado de constante transformação.

Depois de viver sua mudança, Perpétua tornou-se  um ser colorido e que esbanja alegria assim que se bate os olhos nela . Muito falante e expressiva Perpétua gesticula naturalmente, assim como é natural para ela se expressar de uma forma que todos entendam, seja pelo jeito que fala, pela vestimenta que usa ou pela forma que nos olha. No alto de  seus 1,76, usa um chapéu de palha trançada e de aba longa, uma camisa floral e um jeans estampado curto. O perfume é marcante assim como a sua presença, porém nem tudo foram “flores” em sua vida. Por não ter apoio da família, acabou indo para as ruas e se envolveu em um universo obscuro. Passando pelo mundo das drogas à prostituição, Perpétua não se orgulha dessa época e não aconselha ninguém a seguir esses passos, faz o possível e o  impossível para deixar claro como foi sua vida neste período para que sirva de exemplo e alerta para outras pessoas que vivem a realidade do “Ser Trans”.

Encontrou no mundo da beleza o caminho para a sua redenção. Atualmente, Perpétua é empresária e dona de um salão de beleza em Caucaia. Fez faculdade de Estética e Cosmética na Estácio, através de uma bolsa que conseguiu por estudar todo o ensino médio em escola pública. Apesar de toda essa transformação pessoal, Perpétua ainda sente o peso de ser trans em uma sociedade que não entende a sua identidade . A carência afetiva é uma delas, Perpétua sente dificuldade em encontrar uma pessoa que possa construir e compartilhar a vida, como ela mesma diz: “dividir as despesas da vida a  dois”. Para Perpétua, só existe um caminho a seguir, continuar seu trabalho, ser o que é e batalhar pela felicidade todos os dias.

“Quando eu era pequena não entendia muito bem minha condição. Não era porque eu gostava de usar salto ou os vestidos da minha mãe escondida, mas era alguma coisa dentro de mim. Eu não me sentia bem dentro do meu próprio corpo. O corpo era masculino mas a minha mente não. Eu não me via como homem, não gostava quando crescia barba, não gostava de usar shorts e eu sempre fui muito feminina e delicada (risos)”.

"NÃO É PORQUE É COMUM QUE DEVE SER NATURALIZADO", PERPÉTUA, 41 ANOS

A transexualidade refere-se à condição do indivíduo cuja identidade de gênero difere daquela designada no nascimento e que procura fazer a transição para o gênero oposto através de intervenção médica, podendo ser redesignação sexual (cirurgia) ou apenas feminilização/masculinização (administração de hormônios) dependendo do gênero a ser transicionado. No caso da Perpétua, a segunda opção foi o meio que ela usou para suprir sua identidade de gênero e condição.

“Eu não tenho condições de pagar uma cirurgia de mudança de sexo, mesmo sabendo que o SUS faz isso. E eu sei que demora bastante e tem muitos requisitos para efetivar esse processo. Mas o principal motivo pra mim é porque tenho receio e medo. Por isso eu optei pelo uso de hormônio feminino.”. Segundo o Portal Brasil com informações do Ministério da Saúde e Agência Brasil, cirurgias de mudança de sexo são realizadas pelo SUS desde 2008, para obter atendimento os pacientes devem atender requisitos como: maioridade, acompanhamento psicoterápico por pelo menos dois anos, laudo psicológico/psiquiátrico favorável e diagnóstico de transexualidade. Até 2014, foram realizados 6.724 procedimentos ambulatoriais e 243 procedimentos cirúrgicos em quatro serviços habilitados no processo transexualizador no SUS.

“Eu acho que independente do meio que a pessoa vá escolher, o mais importante é ela se sentir bem. Se eu me sinto bem tomando hormônio feminino e se isso satisfaz a minha condição e como eu me vejo, então, vou continuar nesse caminho. Não posso dizer que nunca farei cirurgia porque isso também pode mudar, mas atualmente eu estou bem do jeito que estou”, Perpétua fala ao mesmo tempo em que sorri e se despede da gente dizendo: “Não precisa editar nada não viu? pode expor.”.

Presença LGBT

De acordo com o que sugerem os livros, no começo da história indígena no Brasil, o estilo de vida dos índios era bastante pacato, em todos os aspectos. No trabalho, não poderia ser diferente. Era dele de onde os nativos retiravam o suficiente para o próprio sustento e para a alimentação, sem precisar explorar tanto o meio ambiente para isso. Antes dos colonizadores atracarem suas naus no litoral brasileiro, o trabalho do indígena era realizado somente pela caça, pesca, agricultura de subsistência e a coleta de frutos, tudo sendo utilizado coletivamente pelos habitantes de determinada região.

Além dessas, outras características bem marcantes das atividades laborais dos indígenas diziam respeito à divisão social do trabalho. Os homens eram responsáveis por caçar e pescar, construir as casas onde moravam com as famílias, cuidar da terra e produzir todos os instrumentos para o trabalho, como o arco e a flecha, a lança, vara de pescar e objetos utilizados na agricultura. Já as mulheres cuidavam do plantio e da colheita, especialmente de milho e de mandioca, das crianças, da comida e do artesanato (feito essencialmente, de raízes, sementes, da palha da carnaúba e da argila), outro serviço bastante difundido entre os nativos.

Contudo, após a chegada dos europeus, no século XV, a situação de liberdade e coletividade foi se acabando aos poucos. Todas as relações sociais foram completamente transformadas, inclusive as laborais, pois foram incorporados à força aspectos da cultura europeia, que derrubaram qualquer tentativa de garantia de direitos fundamentais desses povos. A escravidão surgiu como uma consequência dessa relação forçada e arbitrária entre europeus e nativos brasileiros.

Trabalho e identidade cultural entrelaçados na luta

02

Pouco mais de 517 anos depois, as dificuldades enfrentadas pela população indígena ainda não cessaram. No caso do artesanato, por exemplo, a falta de procura externa pelos itens produzidos é a principal queixa dos artesãos do local. Antonizete Alexandre Soares, 48 anos, Tupi-Guarani Calabaça de origem, Tapeba pelo destino, que a juntou com um habitante da comunidade, vive na aldeia de Sobradinho, em Caucaia, é artesã e professora de artesanato. Pela experiência de vida, ela considera praticamente impossível viver apenas do material que produz. Isso, segundo ela, ocorre não somente em sua casa, como nas de toda a comunidade: “o complemento da renda só vem se a pessoa recebe algum benefício do Governo. Caso contrário, o dinheiro que recebemos é todo do artesanato, o que é muito precário, muito fraco”.

Os produtos fabricados pelos artesãos indígenas vão desde colares, brincos, cocares e outros adereços, a redes, remédios caseiros e materiais para uso no dia a dia, como panelas. “A gente faz o que pode, com artesanato de semente, de raiz, de madeira, de palha de carnaúba e argila, com casca de erva medicinal”, explicou Antonizete.

A alternativa mais viável para complementar a renda da família: a agricultura. “Na minha casa, a gente planta macaxeira, banana, batata, feijão, milho… Enfim, é o que a gente planta e consegue fazer”, revela.

"OS NOSSOS ARTESANATOS TÊM MUITO VALOR, MAS SÃO POUCO VALORIZADOS"

Essa prática do plantio e da colheita, mas sem fins lucrativos, foi bastante utilizada e difundida no período anterior ao da colonização europeia. Nessa época, as populações indígenas praticavam a chamada agricultura de subsistência, ou seja, plantavam somente o necessário para suprir as necessidades da tribo e, eventualmente, usavam os materiais coletado como “moedas de troca” por outros itens que precisassem. Contudo, a partir da chegada dos colonizadores na América, por volta de 1492, com a expedição de Cristóvão Colombo e, mais tarde, em 1500, com a ancoragem das naus portuguesas de Pedro Álvares Cabral e cia. no Brasil, esse costume começou a se modificar.

Antonizete, além de ser artesã e fazer parte de um grupo de liderança da aldeia de Sobradinho, exerce a função de psicóloga indígena. Ela explica como funciona o trabalho: “em todo canto eu sou procurada para fazer orações, para aconselhar. As pessoas que têm dificuldade de entendimento eu tento fazer com que elas consigam raciocinar. O psicólogo indígena não é só uma pessoa para orientar, ele é de explicar, de fazer orações, de fazer entender as dificuldades e a realidade que nosso povo enfrenta”.

Com relação à psicologia indígena, Manoel Brandão Neto explica, no site Psicologias do Brasil, que, em contrapartida à origem europeia do estudo dos nativos, existe a União Latino-Americana das Entidades de Psicologia (ULAPSI), que tem o objetivo de promover a Psicologia produzida na América Latina. Esse método pretende utilizar as bases sociais e culturais dos nativos, a fim de compreender essa ciência através de novos horizontes.

A artesã garante que não cobra nada em troca dos serviços extras prestados à população das comunidades por onde passa, mesmo existindo pessoas que façam questão de realizar pagamentos, da forma que podem. “Eu sou muito conhecida nas aldeias por aí afora, e tenho realizado meu trabalho com muito sucesso, sem querer nada em troca. Mas têm pessoas que entendem meu trabalho, meu esforço, e me recompensam com algo”, explica.

Ao final da conversa, quando Antonizete já começava a se sentir mais confortável com a entrevista, ela revelou uma enorme vontade, ainda inacabada, de sua vida: tornar-se engenheira. No começo de sua trajetória, a artesã e psicóloga indígena foi morar na aldeia de Sobradinho, na comunidade Tapeba, junto a uma prima recém-casada. Foi ela quem a ensinou a ler e a escrever. A partir disso, a parente de Antonizete a colocou na Escola Batista, onde foi bolsista, e no Colégio Militar, para, posteriormente, ingressar na faculdade de Engenharia Civil, a qual teve que suspender depois de iniciado o curso, há 27 anos.

Quando questionada se ainda pretende se formar para trabalhar a favor da comunidade, Antonizete foi enfática: “Com certeza. A gente tem um sonho de se formar e trabalhar com a nossa comunidade, assim como eu faço. Eu não perco uma reunião, um chamado, uma viagem. Tem que estar ali, presente. Nós somos uma só pessoa, um só corpo”.

Uma outra profissão bastante comum dentro da aldeia é a de educador. João Kennedy, 25 anos, ensina cultura, expressão corporal e espiritualidade indígena na Escola Marcelino Alves de Matos, da aldeia de Sobradinho. Ele contou que boa parte das pessoas que desejam servir à aldeia, querem ser professores(as) de escolas indígenas, sem nem cogitar a opção de sair para conseguir emprego.

 

Para João Kennedy, isso acaba por fortalecer os ideais de luta da população: “O maior benefício é o da luta mesmo. Se eu sou professor indígena e de uma escola indígena, vou ter a liberdade de lutar com meu povo. Agora, se eu sou um professor que fiz uma prova do concurso ou do município e fui aprovado pelo Estado, trabalhando como concursado, a escola ou o Estado não entendem eu faltar aula por dois ou três dias porque eu estou militando na luta, porque eu estou em um retomada ou porque eu estou em uma paralisação na BR, lutando pelo meu povo e pela demarcação da minha terra. O ruim do trabalho fora da comunidade, fora do movimento, é isso”.

O professor, que, na infância, estudou do 1º ao 3º ano do ensino fundamental em escola indígena e, a partir do 4º ano, foi para um colégio de ensino regular, sempre pensou em trabalhar para a própria comunidade. “Meus parentes até brincam, porque eu passei um ano desempregado, precisando das coisas, mas segurando, porque eu poderia ter arrumado um trabalho fora, mas corria o risco de que, se isso acontecesse, eu não voltasse mais para a luta. Eu preferi esperar e, no ano seguinte, eu lutei para conquistar meu espaço dentro da comunidade”, contou.

Entretanto, nem todo mundo continua esperando dessa forma. Devido à falta de oportunidade para todos os habitantes dentro da própria comunidade, muitos indígenas buscam emprego fora. “Quando um professor nosso se forma na Universidade Federal do Ceará (UFC), na Universidade Estadual do Ceará (UECE) ou em qualquer outra faculdade, ele não consegue achar vaga em uma escola da comunidade, normalmente, faz o concurso e é obrigado a trabalhar fora. A comunidade sofre um pouco por causa disso”, explicou.

João afirma, ainda, que, para que a articulação entre as funções existentes dentro da comunidade e a renda sejam feitas de modo efetivo, as escolas aproveitam para chamar artesãos para oficinas em eventos, realizados pelas próprias instituições ou por Organizações Não-Governamentais (ONG’s). “Essa é a forma que a gente encontra de valorizar os nossos artesãos, que são pessoas que não têm uma renda fixa e não têm estudo. Nem sempre podemos fazer isso, mas quando sim, é de grande ajuda. É importante para que eles se mantenham e mantenham a família deles”, reforçou o também habitante da comunidade de Sobradinho.

Para ele, as pessoas que têm mais dificuldade de se manter financeiramente dentro da comunidade são justamente os artesãos. “Vão ter meses que são bons, que eles participam de algum evento e conseguem ganhar mais dinheiro, enquanto vão ter outros que não. Depende de nós mesmos valorizarmos o trabalho deles, para conseguir ajudar”, explicou. Já com relação à própria remuneração como professor, João garantiu que é o suficiente para conseguir viver, dentro da medida do possível: “O salário que o professor ganha ainda não é tão bom, justamente porque o dinheiro que nós recebemos é para uma luta ainda maior. Se em um movimento for preciso transporte, a gente, enquanto professor, precisa se organizar e ‘bancar’ o transporte. Às vezes, o dinheiro não dá por conta disso, mas acredito que todos conseguem se sustentar”.

Durante a entrevista, João Kennedy lembrou de Weibe Tapeba, líder da comunidade, que fez faculdade de Direito e, posteriormente, retornou à aldeia para auxiliar a população: “Vários dos nossos estudam em universidades ou faculdades particulares, para ter uma formação e conseguir a oportunidade de voltar para as origens”. Ele reforçou a ideia de que o objetivo de muitos dos jovens indígenas da comunidade é de cursar o ensino superior para, depois de concluído, voltar para trabalhar junto dos seus: “por exemplo, se eu me formei em Medicina, quero me tornar médico do meu povo; se eu me formei em Direito, quero estar aqui dentro, orientando os casos do meu povo”.

“Somos um povo muito guerreiro e, se a gente quer alguma coisa, lutamos, batalhamos, corremos atrás, até conseguir”

"TRABALHAR DENTRO DO MOVIMENTO ME APROXIMA DA LUTA DO MEU POVO"

A preocupação de alguns jovens da nova geração de indígenas parece ser comum a todos eles, com a valorização e a exaltação da própria cultura. Dos entrevistados, além de João Kennedy, que já é uma das lideranças da comunidade, Renato Lemos da Silva, 21 anos, demonstra o mesmo apreço e vontade de resistir.

Morador da aldeia de Jandeguaba, vizinha ao bairro Capuan, em Caucaia, o jovem está no último ano de ensino médio, trabalha no setor de patrimônio público, da Prefeitura de Caucaia, e também se dedica ao artesanato, mas nem por isso deixa de lutar pela comunidade. “Eu aprendo muito com o João Kennedy, que é um dos nossos jovens líderes, e ajudo na luta. Gosto sempre de lutar pelos nossos ideais”.

Por não trabalhar de maneira direta para a comunidade, Renato observa que as pessoas não indígenas de seu convívio, em algum momento, em maior ou menor escala, já demonstraram preconceito sobre suas origens: “Na escola, por exemplo, eles perguntavam se eu era índio, eu dizia que era. Muitas pessoas ainda pensam que nós vivemos pelados na mata. Lá no meu trabalho, eles só falam que a gente demarca muitas terras e que nem precisamos disso”.

 

Nessas situações, ele, rapidamente, tenta desconstruir essa ideia preconceituosa: “Quando as pessoas falam isso, eu falo para eles de aspectos da nossa cultura e que, com relação às terras, digo que elas são nossas. Os nossos “troncos velhos” passaram anos e anos nessa luta, até morrer. Eu os convido a conhecer nossa comunidade, nosso povo e nossa cultura, para tentar tirar isso da cabeça deles”.

Renato explicou que passar os traços mais marcantes da cultura de geração para geração é fundamental para os jovens e para comunidade como um todo. Ele destaca que existem pais que não passam essa visão de valorização da cultura para os filhos, por terem sofrido muito preconceito no passado: “muitas vezes, eles acabam passando o lado ruim para os filhos, que acabam se desestimulando”.

 

Mesmo assim, ele defende a importância de ensinar aos mais jovens a terem orgulho de ser indígena. “Temos que mostrar para eles as principais atividades da nossa comunidade, como o artesanato, a dança guerreira. Essa é uma maneira de passar para os jovens os valores culturais. São nesses momentos que nós mostramos nossa verdadeira cultura”, disse.

NOVAS GERAÇÕES

​Assim, de uso consciente e restrito dos bens naturais, os indígenas foram forçados pelos recentes visitantes a utilizar a terra de modo desenfreado. Um estudo realizado pela revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), em 2014, apontou que as mudanças nos usos do solo da Amazônia causaram alterações nos tipos de alimentos, na “rede multiétnica de troca de alimentos, a concorrência por produção para a subsistência e a cooperação para a manutenção de aldeamentos em territórios compartilhados e similares”.

SOLIDARIEDADE

bottom of page