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Casarão

Paulo Yan Carloto

Paulo Yan Carloto

"a.bri.gar

1 Dar abrigo a. 2 Proteger, defender. 3 Ter. 4 Resguardar da intempérie. 

(Dicionário Aurélio)”

 

 

O lugar pulsa. O Lar Torres de Melo não é apenas um grande terreno que pertence a uma instituição, muito menos apenas uma entidade filantrópica que cuida de idosos. Ele é tudo isso, mas o traço vital mais importante do Lar são as pessoas que passam por aqueles corredores, sentam naqueles bancos, conversam sobre o dia e a semana e levantam a voz para não perder os lampejos criativos que a memória lhes traz. 


O lugar inspira paz. Há plantas de diversos tipos, todas ostentando um verde que possuía um inigualável aspecto de serenidade. Perto dos arbustos ou embaixo das árvores sempre havia um banco de madeira, daqueles que trazem a sensação de que a vida é feita de amizades e conversas gostosas. Não é raro se deparar os moradores do Lar desfrutando de boas gargalhadas ao som do canto dos pássaros, essas alegrias são contagiantes e também receptivas: basta chegar perto que qualquer um pode entrar na conversa.


Os funcionários do Torres de Melo estão sempre de um lado para o outro em ritmo acelerado, os idosos, no entanto, andam de maneira lenta, mas não monótona. O segredo está nos olhos, às vezes, distantes num lugar que nenhum de nós pode enxergar (talvez em alguma lembrança de um passado no qual muitos de nós nem tinha nascido), outras vezes, dissimulando a curiosidade, eles sutilmente investigavam tudo que acontece ao redor.
   

Nas paredes, muitas placas, sinais e avisos de natureza muito distintas: uns avisavam sobre datas e eventos religiosos, outros davam dicas de saúde ou traziam alertas aos visitantes com relação aos cuidados que deveriam tomar. Um enfeite na parede, porém, chamou a atenção mais do que todos os outros: um mural de fotos que continha registros de algumas atividades realizadas com os idosos, mas não mostrava as datas de suas realizações. Do bingo ao presépio, da praia ao baile de carnaval, da missa à festa junina, ali estavam imagens de pessoas com intensa sede de viver.
   

A equipe do Lar, apesar de estarem em uma incessante correria, mostrou o lugar onde as idosas que possuem Alzheimer costumam residir: o Casarão. Esse, sem dúvida, é o lugar mais singular de todo o abrigo. Lá estavam as meninas que roubavam toda a atenção. Ele é, na maior parte do tempo, silencioso, só o som da televisão ou de alguma pequena conversa entre as moradoras arranhavam levemente a quietude do ambiente. Logo em sua entrada, há um banco e algumas cadeiras que para lá foram levadas, agora vazias, elas indicam que uma boa conversa tinha acabado de acontecer ali.
   

No Casarão, há cerca de oito senhoras que compartilham um sofá e algumas cadeiras. Elas assistem concentradas a um filme sobre surfe e superação, coisas de Sessão da Tarde. Algumas, porém, não conseguem parar e sentar. Uma dessas inquietas era Joselita. Ela adora apresentar a sala, a cozinha e os dois quartos daquela que era sua casa a quem quer lá chegue. Nos quartos, ela faz questão de apontar os pequenos objetos de gesso feitos pelas próprias moradoras do lugar com seus respectivos nomes. Às vezes sua memória traz lembranças e saudades de sua mãe, que era professora do Estado. 
   

Uma delas passava de um lado para o outro, às vezes, para a cozinha ou para o lado de fora da casa, sem falar uma palavra. Enquanto isso, Carla, que odeia o modo como os porto-riquenhos falam inglês, conta sobre suas viagens ao exterior, sobre como abandonar sua mãe foi doloroso e recita uma poesia de sua autoria que faz tremer por dentro a quem quer que a escute, era sua própria canção do exílio. Não há como se depedir de um conversa com Carla sem chamá-la de poeta. 
   

Chegou a hora da refeição, todas elas tinham de sentar em uma das duas mesas para comer. Nesse momento puxei conversa com Maria Mendes. Ela me perguntou se eu já havia estado lá outra vez, eu disse que não, ela me disse então que o horário de visitas era de 13h às 16h. Depois, começou a contar sobre sua infância no Aracati, sobre sua casa que possuía um enorme cajueiro e era porta a porta com a igreja da cidade e sobre a grande generosidade de sua mãe. Depois de uma breve pausa, seus olhos passearam por outros lugares daquela casa e novamente me encontraram, ela faz as mesmas perguntas que fez ao nos apresentarmos, surpreso, dou a ela as mesmas respostas. Ela novamente relembra a história de sua infância. Por mais duas vezes isto aconteceu, e em cada uma delas eu sentia o prazer de conhecer e ser conhecido por Maria Mendes.

 

 

 

 


Novamente, aquela figura com ares de imensa curiosidade se aproxima, dessa vez, contudo, ela para em minha frente e me dá um pequeno panfleto com uma imagem de Jesus Cristo na frente e uma oração em seu verso. Pergunto se era dela e gostaria que a lesse, ela diz que quer me dar. Aproximo-me da mesa das comadres que conversam com bastante empolgação, a hora de ir chegou, Joselita elogia bastante, diz que gostou da visita e faz algumas brincadeiras. Maria Aparecida me pega pelo braço, beija minha testa e cabelos, olha em meus olhos e pergunta: Quando você vem de novo? Eu, atônito, tento me esquivar e digo que vou fazer o máximo possível para voltar, que o quanto antes puder estaria lá.


Deixamos aquela pequena casa que, dentro do relativamente grande Lar Torres de Melo, espalha uma alegria ímpar. Saímos dali com a sensação de que pudemos conhecer pessoas que vivem e irradiam vida. Conhecemos o coração do Lar Torres de Melo.

O Lar, que atualmente abriga 223 moradores, recebe 23% do necessário para sua manutenção de fontes públicas, Governo do Estado e Prefeitura de Fortaleza, e 77% da sociedade civil. As contribuições estatais, porém, têm se tornado mais escassas ao longo do tempo. Outra fonte de receita da casa é a renda dos idosos que lá residem, 70% de suas aposentadorias são direcionadas para a manutenção do abrigo.

Para cuidar dos idosos, o abrigo conta com assistência de médicos, fisioterapeutas, assistentes sociais, nutricionistas, enfermeiros, farmacêuticos e terapeutas ocupacionais. Esses profissionais, contudo, ainda são um número reduzido.

O Lar é dividido em quatro áreas principais com cuidadores em cada uma delas: Enfermaria masculina, enfermaria feminina, casa Magalhães e casa Solidariedade. A área conhecida como Casarão partilha do mesmo cuidador da casa Magalhães.

Por mais duas vezes isto aconteceu, e em cada um delas eu sentia o prazer de conhecer  e ser conhecido por Maria Mendes.

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