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Das alegrias de viver

Carolina Gomes

Didio Theorga

Nah Jereissati

Na tarde de um domingo chuvoso, encontramos dona Marilene em um café no Dragão do Mar, em Fortaleza. A simpática senhora chegou acompanhada de sua filha, Thays Mariana Lavour, e de dois amigos - um em especial que dona Marilene gosta muito e carinhosamente nomeou André, apesar de ele se chamar Rômulo.

Thays Mariana é filha única de Dona Marilene. Ela, com auxílio da prima-cuidadora Marli, é quem dá todo o carinho e suporte necessário a D. Marilene.

Durante a entrevista, D. Marilene perguntou três vezes se éramos estudantes de jornalismo, evidenciando os sintomas do Alzheimer.

O Alzheimer é um detalhe na vida de Dona Marilene. Bem humorada e com uma memória seletiva, ela parece ter escolhido lembrar de tudo o que faz bem e segue, para além dos entraves da saúde, curtindo a vida a seu modo.

 

Marilene Ferreira de Oliveira. 24 de agosto de 1942. O que esse nome e essa data tem em comum? Uma criança, uma mulher, uma senhora. Um ser humano que já aproveitou tudo que a vida pode oferecer, e que hoje só vive e cuida dos legados que deixou durante seus 73 anos.

 

Como conhecemos D. Marilene? Em um fim de tarde chuvoso, nos encontramos para tomar um café. Ela, no início, não gostou muito da conversa, mas aos poucos foi se sentindo à vontade e soltando lembranças e vivências de uma vida completa, sem arrependimentos e cheia de alegria.

 

Dona Marilene, como é conhecida entre amigos, é natural de Tauá, no interior do Ceará, mas por lá viveu pouco. Ainda pequenina, foi morar em Fortaleza, cidade na qual vive hoje. Aos 27 anos, D. Marilene teve a oportunidade de sair do Ceará e ir morar em Roraima, mais precisamente na capital Boa Vista. O convite era irrecusável: trabalhar na prefeitura da cidade, com um bom salário e estabilidade. A função era de contadora, profissão na qual D. Marilene, apesar de não sentir muita afinidade, se formou em um curso técnico.

 

 

 

Quando a senhora era estudante, gostava muito de estudar? Sentiu falta quando deixou de ser estudante…

 

Não, eu não gostava muito de estudar não, meu negócio era passear. Eu nunca gostei muito de estudar. Terminei um curso técnico em contabilidade e comecei uma faculdade aí, mas não terminei…

 

Thays Mariana (filha): Foi filosofia.

 

Eu já tava num emprego, já ganhava o que eu queria ganhar. Já tava no nível que eu queria ficar, então deixei o estudo de lado. Achava bonito os outros, mas eu não gostava. Admiro e dou força para as pessoas, mas… Meu avô dizia assim “Uma moçona dessa só vive com o livro debaixo do braço, vai perguntar as coisas a ela, não sabe de nada” (risos).

Em Roraima foi onde viveu a melhor parte de sua vida, lugar onde tem lembranças que não acabam mais, lembranças que vem e vão, mas momentos que foram vividos e não há desvio neurológico que apague. Foi lá que D. Marilene construiu a vida que tem hoje, foi lá que experimentou prazeres, fez amizades, viajou, festejou, trabalhou e construiu uma família, ou melhor, teve a sua única filha, seu bem mais precioso, que hoje retribui da forma mais bonita possível todo o amor e dedicação recebidos durante uma vida inteira de sua mãe.

 

 

A senhora sempre vai a Roraima?

 

Sempre. Esse ano eu já fui lá, já?

 

Thays: Ano passado a senhora foi. Esse ano a senhora vai de novo nas férias encontrar com as amigas...

 

É porque lá é que eu tenho minhas amigas, um pessoal bom que eu conheci, e um lugar bom que eu não esqueço. Foi lá que eu arranjei minha filha.

 

E a senhora gostaria de morar lá agora?

 

Queria, mas não posso, porque Mariana não pode me acompanhar e eu não posso ficar só, né? Minha amiga tem fazenda, não tá todo tempo na cidade - uma semana na cidade, outra na fazenda. Ela tem uma fazenda e quem cuida da fazenda é ela, quem administra a fazenda é ela, não pode se afastar.

AMOR MODERNO

 

Marilene nunca casou, gostava das liberdades, de ser independente, mas nem por isso deixou de amar. Nunca foi muito afoita, gostava da tranquilidade e da estabilidade, mas nem por isso deixou de se aventurar.

A senhora foi casada?

 

Não, eu tinha um amigo, muito amigo meu. Ficamos muito amigos e resolvemos fazer ela (Thays). Mas casada, mesmo… (nega com a cabeça). Ele solteiro e eu solteira, ele morreu solteiro e eu ainda continuo solteira, esperando ele me chamar (ri).

 

Mas ele nunca morou com a senhora?

 

Não, eu na minha casa, e ele na dele. Quando queriam, tavam encostados namorando. Eu era de maior, vacinada, tinha meu salário e vivia por minha conta, eu ia dar satisfação a ninguém. Tinha uma tia, eu fui embora lá para casa dela. Aí quando eu vi que ela não gostava disso nenhum pouco, eu tomei meu rumo.

 

Ele morava perto?

 

Boa Vista era uma cidade pequena. Agora pode tá grande, mas era pequena. Todo mundo morava perto e todo mundo tinha carro. Vai para lá, vem para cá, é perto.

 

Ele chegou a vir embora com a senhora para Fortaleza?

 

Nós viemos embora... Ele morreu depois que nós ficamos aqui, não foi, Mariana?

 

Thays: Foi, ele morreu no ano passado.

 

E eu me aposentei e vim embora porque eu queria que ela viesse estudar, e ele também queria muito que ela viesse estudar aqui.

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AVENTURAS

Thays: Mamãe, conta para eles… Ela teve um fusca lá, e antes disso ela andava de moto, né, mamãe? Fazia "pega" de moto…

 

Andava. Eu possuí foi outras motos. Bem longe, no aeroporto, tinha uma pista muito boa, a gente fazia pega. E já levei não sei quantas quedas de moto.

 

E a senhora ganhava?

 

Fazia era cair muito. Caía, me ralava ... (risos)

 

Ia pro hospital, voltava de novo. Fiz muita presepada! Ainda bem que a Mariana não puxou para mim, ia dar muita dor de cabeça. E minha mãezinha que tava aqui (Fortaleza) nem sabia que eu fazia essas presepadas. Mas não era coisa que fizesse vergonha a ela, era essas besteiras que podiam me prejudicar, né?

 

[...]

 

Eu andava muito de moto e caí muito também viu. Mas era bom demais. Nesse tempo eu era nova, tinha meus amigos. Quando dava 17 horas, todo mundo terminando o trabalho, a gente ia correr na pista do aeroporto. Era bom, viu? A gente ia para Venezuela de moto, era muito bom. Teve uma época da minha vida que foi boa. Tem tempo bom e tem tempo ruim, uma coisa cobre a outra, e a gente vai em frente. Não só tem coisa boa também, né?

Dona Marilene faz terapia ocupacional, com um grupo de 16 pessoas. Lá eles trabalham a cognção, com pintura, prática do ditado e da língua portuguesa, além de atividades fora da sala de aula, como passeios.
D. Marilene também faz hidroginástica como exercício físico.

Há cinco anos, D. Marilene foi diagnosticada com Alzheimer, mas não deixou de ser feliz, nem deixou de fazer o que ainda podia fazer. Faz até o que não pode, sem se entregar à doença ou à idade. Sim, D. Marilene tem 73 anos. Sim, D. Marilene é portadora da doença de Alzheimer, mas, não, em nenhum momento ela deixa isso transparecer, fazendo dela própria uma lição de superação e vitalidade.

 

Hoje, a aventureira mora no bairro João XXIII, em Fortaleza, com a filha e a prima Marli, que é também sua cuidadora e amiga confidente. Já teve outras pessoas que cuidassem dela, mas, depois de tentativas frustradas com cuidadores com quem não se adaptava, optou mesmo pelo conforto da família. Ela e Marli já passaram por muitos momentos. Foram e voltaram de Roraima juntas. E dois dos três filhos de Marli foram criados também por D. Marilene, tornando essa uma amizade para poucos.

 

Uma senhora tranquila que gosta muito de ficar em casa, no seu cantinho, assistindo televisão, e que também se anima para dar passeios com a filha aos fins de semana. Gosta muito de comer quitutes salgados. Quem sabe uma lasanha bem feita? Gosta de chocolate branco, de um bom café, mas tudo isso consumido com regras, pois a dieta ainda precisa ser respeitada para cuidar do colesterol e da diabetes. Mas sempre dá para dar uma escapada e comer um chocolatezinho escondido da filha. Toda semana, ela faz hidroginástica e terapia ocupacional. Lá, encontra amigas e passa a tarde conversando sobre a vida e se divertindo.

 

LEMBRANÇAS

 

Uma vez no ano volta a Roraima para visitar os entes queridos e colocar as conversas em dia. Lá, vai para as fazendas das amigas pescar, almoçar à beira do rio e matar a saudade dos animais. E sente falta de sua cachorrinha Nikita, ou da dupla de galinhas Timóteo e Tieta, que um dia já lhe fizeram companhia, mas hoje prefere não criar para não aborrecer a prima Marli que não se dá bem com bichos.

E aquele lugar que nós fomos, que atravessamos o rio? O Uraricoera.

 

Thays: Foi quando a gente tava voltando da Venezuela. Roraima faz fronteira com a Venezuela, então as pessoas vão muito para lá. Não dessa última vez, mas da outra vez a gente foi para a Venezuela. Aí a gente voltou no fim de tarde e foi jantar na beira do rio Uraricoera. É um rio enorme, você não vê nem o outro lado...

 

E a lua linda… Mas foi lindo ali, eu queria ter tirado umas fotos.

 

Thays: Só não foram bons os carapanã, mas o resto tava ótimo.

 

É, muriçoca que lá eles chamam carapanã. Mas foi lindo, esse dia.

 

Thays: Nós comemos uns Tambaqui enormes, né, mamãe?

 

Era cada Tambaqui assado na brasa... E um amigo meu, que é médico e me chamou para almoçar lá, assou um tambaqui que era deste tamanho (abre os braços), ficou mais de uma banda de tambaqui que sobrou.

 

[...]

 

Na fazenda desse meu amigo, o Chicó, a gente ia para a beira do açude pescar. Aí ele “Umbora pescar, Marilene, um peixe para gente almoçar”. Ficava ali, na beira do rio, aí pescava.

O poder de D. Marilene é fazer quem estiver por perto se sentir tão bem quanto ela própria se sente. O Alzheimer poderia deixá-la triste, mas a felicidade, a extravagância e, acima de tudo, a motivação, ainda são evidentes em sua vida.

 

Marilene Ferreira de Oliveira, 2016, é feliz por tudo o que recebeu e proporcionou e satisfeita pelo que viveu.

Mas a senhora acha que curtiu muito na vida?

 

É. É bom, né? Pelo que eu vivi, graças a Deus, tô satisfeita. E todo dia eu agradeço a Deus. Eu digo assim: tenho o meu salário, tenho a minha casa para morar, tenho a minha filha, tô realizada, né? O pai dela morreu, mas eu fiquei aqui.

 

Nada melhor que isso. Convivo bem com as pessoas que eu gosto, que demonstram gostar de mim também. Isso que é importante.

 

Na medida do possível, tá tudo muito bem. A gente tem que aceitar tudo que Deus dá para gente, não querer nada além, nem se sacrificar para ir mais longe. Vai de acordo com o que Deus dá. Olho e vejo que estou na minha casa, não estou devendo nada, só tenho uma filha, tô satisfeita. Eu me sinto assim, realizada. E quando eu partir, se Deus quiser, a Mariana já tem onde morar e como viver.

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