
Cuidadores
Kevin Alencar
Maggie Paiva
Muito antes de o Mal de Parkinson e o Alzheimer surgirem na vida de Seu Antônio, ele trabalhou como cozinheiro, viajando em navios.
"cui.dar
2 Ter cuidado em; tratar de.
(Dicionário Aurélio)”
Antes mesmo do Alzheimer surgir, Ivonete dos Reis, de 48 anos, percebeu que algo não estava certo com a saúde do pai. Depois das consultas médicas, o diagnóstico: os pequenos tremores nas mãos e no pescoço de Antônio dos Reis, 89, eram consequências da doença de Parkinson. A princípio, as vidas de pai e filha não sofreram mudanças drásticas. Mas quando o tempo passou e Ivonete percebeu que Seu Antônio já não conseguia ficar em casa sem a supervisão de alguém, ela soube que chegaria o momento em que precisaria pedir demissão da creche onde trabalhava.
Seu Antônio já fazia acompanhamento médico por conta da doença de Parkinson quando Ivonete notou um outro comportamento estranho no pai. Mesmo logo depois de terminar uma refeição, ele insistia em dizer que não tinha se alimentado. Sempre sentindo fome, chegava a morder bananas com casca e tudo e ingerir alimentos estragados, constantemente, esquecendo os nomes das frutas que comia. O Alzheimer chegou e Ivonete passou a cuidar do pai em tempo integral.
Hoje, após dois anos de Alzheimer e cinco de Parkinson, Seu Antônio tem a locomoção reduzida, pela força das duas doenças combinadas. A única coisa que ainda lembra com certa frequência é o próprio nome. Isso não impede Ivonete de sempre tentar puxar conversa enquanto faz as tarefas domésticas. As únicas respostas que recebe, entretanto, são olhares e alguns esporádicos sinais com as mãos em direção à boca, indicando a vontade de se alimentar. E se Antônio dos Reis esboça alguma palavra, a filha diz ser a única a entender.
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“As pessoas me perguntam como eu entendo o que ele quer. Como já tenho o hábito de cuidar, já conheço sua linguagem” , diz Ivonete, que vez ou outra era confundida com a própria mãe, esposa de Seu Antônio. “Sobre os filhos homens, ele perguntava se eram seus irmãos. Aqui e acolá é que ele ainda lembra do filho mais velho”.
Na música, o velho Baiano – como é conhecido na rua onde ainda mora, mas sem hoje poder continuar cultivando sua fama de brincalhão –, parece encontrar memórias perdidas. Ivonete lembra, emocionada, da vez que viu o pai tentar cantarolar uma canção de Roberto Carlos que tocava na cozinha. E se é Luiz Gonzaga quem puxa sua sanfona, Seu Antônio até mexe os pés e as mãos em resposta ao convite da filha para dançar.
Não foi fácil ver o pai cada vez mais recluso em seu mundo próprio, e ela ainda lembra quando veio o primeiro “Quem é você?”. Depois de afirmar, com o peito estufado de orgulho, que era a filha de Antônio dos Reis, o homem que já viajou por muitos mares como cozinheiro, ganhou um abraço, ato de carinho que se tornou constante na relação entre os dois.
Mesmo que não lembre com clareza, Seu Antônio tem 9 filhos, 10 netos e 1 bisneto.
Mesmo com todas as dificuldades, principalmente na hora do banho – momento em que Seu Antônio, às vezes, se torna agressivo –, Ivonete não abre mão de cuidar do pai, ainda que sozinha. “De vez em quando eu penso: quando papai partir, como é que vai ser? O pessoal me diz que eu vou ver assombração”, diz ela, entre risos. Com o laço de afeto renovado após o avanço do Alzheimer, Ivonete confessa: “Acho que nasceu um novo amor”.
Por um tempo ela cogitou pedir a ajuda de cuidadores profissionais ou cadastrar Seu Antônio em um lar para idosos, é verdade, mas não levou a ideia adiante. Ela prefere mesmo é ficar o tempo todo com o pai, guardando a convicção de que o vínculo familiar e afetivo tem sido essencial na interminável batalha contra o Alzheimer. O ritual matinal de colocar Seu Antônio sentado na cadeira da cozinha e insistir nas conversas, por exemplo, é indispensável para Ivonete. “Mesmo que ele não responda, ele tá me ouvindo. Se ele não tiver ouvindo, ele tá sentindo”.
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ROTINA CONTROLADA
Além da convivência com o Alzheimer, o que Seu Antônio tem em comum com Alberto Souza, 88 anos, é a relação de ambos com o mar. Seu Alberto, em uma vida que parece pregressa, foi marinheiro e chegou a servir na Segunda Guerra Mundial, ainda em 1942. Hoje, em meio a memórias esquecidas, divide sua residência com a esposa, Cleanes Souza, 42, com quem já vive há 20 anos.
Os primeiros sinais da doença vieram quando Seu Alberto, há 8 anos, passou a esquecer coisas triviais como a senha do banco e não conseguia mais dirigir sem se atrapalhar no processo de mudança de marcha do carro. A princípio, Cleanes precisou lutar contra a relutância do marido em visitar o médico, e hoje se dedica quase integralmente a cuidar dele, contando com o auxílio de uma cuidadora profissional apenas nos momentos em que precisa ir à faculdade de Fisioterapia.
A rotina de Seu Alberto, programada por Cleanes com o auxílio dos médicos, garantiu ao ex-combatente uma considerável conteção na degeneração de suas capacidades cognitivas e motoras. Nada o impede, por exemplo, de subir e descer os pequenos degraus da casa – sempre de mãos dadas com a esposa – para o seu passeio diário.
Na mente, o velho marinheiro ainda guarda algumas lembranças mais antigas, mesmo que por vezes troque os nomes dos irmãos pelo dos filhos – estes nascidos da esposa anterior, uma memória também perdida. “É um problema que não é fácil. Nem para o paciente, nem para a pessoa que cuida, nem para os familiares”, diz Cleanes, cujo nome e feições Seu Alberto não esquece por conta da convivência diária.
Além das saídas diárias para exercitar o corpo, Seu Alberto também realiza atividades ocupacionais. Comidas pesadas estão proibidas e cada alimentação é dada por Cleanes nos horários programados.
Cleanes busca aplicar o que aprende na faculdade de Fisioterapia na rotina do marido, que diariamente realiza exercícios físicos e atividades ocupacionais, vivendo sob constante supervisão da companheira. Na alimentação, não é diferente: a dieta controlada foi o que tirou Seu Alberto de uma má fase de saúde pela qual passou há dois meses.
Mesmo com o vigor de Seu Alberto perante o Alzheimer – afinal, oito anos seriam suficientes para debilitar totalmente mesmo os mais fortes pacientes –, Cleanes vive hoje não apenas por ela, mas também pelo marido. Os medicamentos, sempre caros, e outros itens necessários para manter a saúde dele fazem Cleanes pensar duas vezes antes de realizar qualquer gasto pessoal. “Para qualquer lugar que você vai, você gasta. Se eu for para um restaurante, já deixo de comprar alguns pacotes de fraldas”, diz.
“Ele não está totalmente debilitado hoje porque sou rigorosa. Eu não deixo a doença cuidar dele. Quem cuida sou eu! E ela vai sofrer comigo.”
Cleanes Souza
Mas ela não cogita desistir. O marido ainda é para Cleanes o que há de mais importante no seu dia a dia. E com o aprendizado que obteve, não cansa de frisar: “Diga aos seus pais que os ama enquanto pode e enquanto eles absorvem essas palavras de carinho. Porque quando acontece isso...”. Quem completou a frase, entretanto, foi Seu Alberto, que antes escutava calado: “É tarde”.
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CUIDADO E AFETO
Maria Teresinha hoje tem 89 anos e já convive com o Alzheimer há quase uma década. Ela foi professora de crianças na juventude, mas, com a mobilidade reduzida, não consegue mais caminhar sem o auxílio de outra pessoa. Para isso, e para tantas outras coisas, ela conta com a ajuda de Rose Queiroz, 25, que já cuida de Dona Teresinha há três anos, dividindo o trabalho com a própria mãe, que também é cuidadora.
Esse não é o primeiro trabalho de Rose com uma pessoa idosa, mas foi o primeiro contato que teve com o Alzheimer. E, por isso, ela reconhece que o desafio é maior dessa vez, dada a necessidade que Dona Teresinha tem de ter sempre alguém por perto para ajudá-la nas tarefas mais triviais..
“Ela volta a ser uma criança e fica completamente dependente da gente.”
Rose Queiroz
Nos momentos em que Dona Teresinha não pode contar com a presença de suas duas cuidadoras, é a filha quem atende às necessidades. Mas se Rose não está lá, a ex-professora logo sente falta: são frequentes suas perguntas pelo paradeiro da jovem quando esta está em seus momentos de folga.
Não há nenhuma relação de parentesco entre as duas, mas três anos foram o suficiente para o nascimento de um afeto tão forte que faz Dona Teresinha acreditar que Rose é mesmo parte de sua família. "Quando a médica pergunta a ela quem sou eu, ela diz que sou neta”, conta. “Ela pode esquecer o nome de todo mundo, mas o meu ela não esquece”.
Mas nem sempre foi assim. Rose ainda lembra que no seu primeiro dia como cuidadora, Dona Teresinha não aceitou bem a presença de uma pessoa estranha em sua casa. A expressão sempre fechada tornava difícil até mesmo tentar iniciar uma conversa. “Eu tive que mostrar a ela que eu não era uma pessoa estranha que queria fazer o mal. Eu fui conquistando a confiança dela”, diz Rose, que aos poucos foi aprendendo a lidar com a avó quase adotiva.
Mas se antes havia indiferença, hoje sobra carinho por parte de Dona Teresinha. Quando mais jovem, não era bem de seu feitio demonstrar afeto com tanta frequência, segundo sua filha. Agora, são constantes os elogios que faz a Rose, pela atenção que a moça sempre dedica. “Esse jeitinho dela é o que vai me cativando e me fazendo gostar ainda mais”, diz a moça.
O tempo que tem passado como cuidadora trouxe mudanças para a vida pessoal de Rose. Hoje, ela sabe que não quer outro futuro profissional além daquele que envolva dedicar-se a cuidar de outras pessoas. “Vou começar um curso, de cuidador ou de enfermagem. Eu acho que nasci pra isso”, afirma, confiante. O que ela confessa ainda não ter imaginado é a rotina sem Dona Teresinha.