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O neto da Dona Nilva

Maggie Paiva

Reprodução/Internet

Quem entende mais sobre conviver com uma pessoa diagnosticada com Alzheimer do que alguém que, de fato, conviveu?

 

Alguém que viveu cada experiência, cada mudança de humor, acompanhou cada memória desaparecer, ou mesmo as que surgiram, e lidou com cada episódio do riso ao choro, passando pela dificuldade e chegando até o conforto.

 

Por um lado, médicos podem oferecer conhecimentos técnicos e científicos, explicar de forma mais crua o que um familiar de um paciente com Alzheimer pode esperar a partir do diagnóstico. E jornalistas podem se dispor a ouvir histórias e mesmo a compartilhá-las, sobre a doença, sobre as pessoas e suas vidas.

 

Mas nenhum desses relatos pode se igualar àquele de quem de fato viveu, conviveu, sentiu e, apesar de toda dor, tristeza, perda e desprendimento, escolheu falar do presente da convivência, do que fica, sobra, nasce e que se abraça em um dia a dia de dificuldade e aprendizados.

 

E foi isso que Fernando Aguzzoli resolveu fazer em seu livro, Quem, eu? – Uma avó. Um neto. Uma lição de vida.

 

Nele, o estudante gaúcho conta um pouco da difícil e cheia de percalços história de vida de sua avó, Dona Nilva, também sua melhor amiga, que praticamente o criou junto dos pais.

 

Em pouco mais de 170 páginas, ele relata a infância ao lado da avó e a relação especial entre os dois, o que serve de prelúdio para o que a história reservava para Dona Nilva e, por consequência, para a família.

 

O surgimento dos sintomas, a negação, o momento em que não se podia mais negar os estranhos lapsos de memória de uma senhora sempre tão ativa, a fatídica consulta e o inevitável diagnóstico de Alzheimer.

 

A partir daí, o livro trata de escolhas. A escolha da filha de Dona Nilva em levar a mãe para morar perto, a escolha da família de abraçar, mais que literalmente, a matriarca, inserindo-a completamente em suas casas, vidas e rotinas, e as próprias escolhas de Fernando, no final da adolescência, pesquisando sobre o "alemão" (como ele se refere muitas vezes ao Alzheimer). O então jovem se aventurou em desvendar as implicações da doença na vida de alguém tão próximo  e cuja vida a partir desse momento se entrelaçava cada vez mais com a dele.

 

Posteriormente ao diagnóstico, a escolha de Fernando em se empenhar no cuidado com a avó e, eventualmente, deixar o curso de graduação e outros projetos para se dedicar integralmente a ser o companheiro de Dona Nilva, que, inevitavelmente, esquecia o nome e o parentesco com o neto.

 

Ele ainda fala sobre a página "Vovó Nilva" (no Facebook), que criou e pode atualizar, dividindo experiências, recebendo relatos de outras pessoas, compartilhando fardos, alegrias, aprendizado e recebendo apoio nos momentos complicados. Tudo começou, pois, por muitas vezes, ele recorrer à rede social como fuga para o medo ou para o sentimento de impotência por não poder fazer nada diante de alguma imposição da doença.

Mais que a história de um ser humano com memórias que teimam em ir embora, Quem, eu? Retrata a história de amor de uma família que se recusou a sucumbir a um problema que dificilmente dava trégua, a amizade improvável e cheia de sorrisos entre uma avó e um neto, que tampouco se rendeu às mesmas dificuldades.

 

Consciente, Aguzzoli não se limita à sua própria experiência como companheiro de um paciente com Alzheimer, as observações dos anos em que passou cuidando da avó são corroboradas ou negadas por informações médicas, escritas de forma quase didática.

 

Não chega a ser, no entanto (e nem é esse o objetivo), o caso de um relato que romantiza um problema que ainda afeta mais de um milhão de brasileiros (e cerca de 35,6 milhões de pessoas no mundo inteiro). As dificuldades são contadas, as dúvidas, os estresses, as tristezas, a falta de esperança, as escolhas que precisavam ser tomadas, os julgamentos, os limites.

Mas, novamente sobre as escolhas, talvez o livro em si tenha sido a maior delas. Quando Aguzzoli escolheu retratar muito mais o que ficou do que o que o Alzheimer tirou, muito mais do que a doença deu do que roubou. O jovem que escolheu levar o riso para o dia a dia de sua avó e de sua família também escolheu escrever sobre isso para a posteridade.

Ele conta causos engraçados, causados pela ausência de memória ou pela falta de conhecimento das pessoas, que passou ao lado da avó, das vezes que foi acordado de madrugada por ela e ainda assim conseguiu rir e levar riso para alguém que fez tudo por ele, da viagem para a qual levou Dona Nilva mesmo sabendo que ela se esqueceria daqueles momentos.

"Vó: Eu quero ir pra casa!

 

Eu: Mas vó, tu tá em casa!

 

Vó: Não. Eu quero ir pra minha casa agora. Eu não sei o que aqueles meus casacos estão fazendo nesse armário, nem essas minhas bijuterias aqui na cômoda, mas eu quero ir pra minha casa agora!

 

- pra evitar discussão -

 

Eu: Ok, então deixa eu te ajudar a fazer a mala.

 

- pego a mala e começo a dobrar as roupas enquanto conversamos e rimos -

 

Vó: Aquele casaco ali também é meu ó!

 

Eu: Aquele é da mãe.

 

Vó: Que mãe o que...É MEU!

 

Eu: Ai Deus, nem te serve, mas ok! haha.

 

- dali cinco minutos -

 

Eu: VÓ, TU TÁ COLOCANDO TUDO O QUE DOBREI DE VOLTA NOS CABIDES?

 

Vó: Sim Fernando, quer que eu deixe jogado na mala?

 

Eu: Mas tu não ia sair?

 

Vó: Não, tu tá confundindo tudo...eu to chegando agora!

 

Eu: Ai meu SANTO, vai ver estou confundindo mesmo...foi a viagem mais rápida que já fiz!"

Sem grandes pretensões literárias, Quem, eu? é um livro que chama mais atenção pelo que traz em suas páginas do que pela forma como foi escrito. Conseguindo falar de amor, alegria e família sem tentar fugir dos males que vem junto de uma doença sem cura, Aguzzoli mostra coragem, maturidade e uma fé na vida que poucos conseguem alcançar.

 

As escolhas dele na hora de falar sobre um problema complexo e sensível mostram que é possível e deve ser permitido deixar um pouco a seriedade de lado na hora de tratar e conviver com o Alzheimer, e mesmo que, apesar do peso que a doença carrega, é possível levar a rotina com leveza e equilibrar a balança.

 

Em prol de se ter mais sobre o problema do que dados, histórias com foco na tristeza e negatividade, o autor desnuda a própria alma para falar do que mais deveria importar, para estender a história para além do ponto final da mesma, mostrando que o que somos ou fazemos em vida, com ou sem memória, se estende pela história como uma aura um tanto eterna que não acaba no fechar de um livro, um último suspiro, último piscar de olhos e última troca de palavras.

 

Aguzzoli encanta, convida a refletir e, mais que tudo, emociona com uma história que é muito mais que o seu ponto final. O aprendizado da família, o carisma de Dona Nilva, a coragem de Fernando e a própria leitura são presentes para quem conseguir enxergar que as diferenças entre uma situação totalmente favorável ou totalmente desfavorável residem muito nos ângulos pelos quais se enxerga, que esse tipo de escolha é importante, que não se vive apenas com 8 ou 80. Que há memórias e sentimentos que problema nenhum pode roubar, que tons de cinza não são necessariamente pretos e que dias nublados podem ser genuinamente belos, mesmo quando pesados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Quem, eu? Uma avó. Um neto. Uma lição de vida - Fernando Aguzzoli

 

 

Editora Belas Letras, 2014

 

 

176 páginas

 

 

Livraria Cultura, R$ 35,90

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